Elfos Negros na Terra-média: mudanças entre as edições

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Edição das 13h10min de 8 de março de 2024

Em resposta a tudo que tem sido falado desde a divulgação das primeiras imagens da nova série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, eu resolvi fazer um vídeo analisando a fundo o que J.R.R. Tolkien de fato já havia falado sobre a aparência dos Elfos de seu universo, em especial o seu tom de pele, sob o ponto de vista tanto de livros "canônicos" quanto de livros "não-canônicos" (i.e., aqueles livros que não foram finalizados em vida e acabaram sendo publicados postumamente com edições e comentários de outras pessoas).

O vídeo em questão foi publicado em 07/03/2022 (você pode assisti-lo clicando aqui), mas, depois de ver os incontáveis comentários que surgiram nele, eu achei que o vídeo acabou ficando um pouco desfocado, pois adentrei em questões que não tinham qualquer ligação com o tom de pele dos Elfos (como barba, cabelos, olhos, etc.), bem como adentrei no dilema sobre o que é e o que não é "canônico" no legendário da Terra-média, que influencia essas outras questões, mas não o tom de pele em si, e isso acabou deixando certos pontos ambíguos e confusos.

Por esse motivo, eu resolvi fazer um novo levantamento, mais detalhado, para sintetizar melhor essa discussão, centralizando ele exclusivamente no tom de pele dos Elfos.

Aviso 1: salvo menção em sentido contrário, todos os livros citados são das edições da HarperCollins Brasil.

Aviso 2: uma versão desse levantamento foi publicada em formato de vídeo em 02/04/2023 (você pode assisti-lo clicando aqui).

Introdução

Antes de adentrarmos no levantamento em si é importante ressaltar um ponto muito importante:

O autor J.R.R. Tolkien nunca disse que todos os Elfos de seu universo eram brancos ou que Elfos pretos não existiam.

Tendo isso em mente, você pode se perguntar: "se Tolkien nunca falou isso, então por que estamos tentando essa discussão?" E, tentando simplificar uma resposta que certamente poderia se estender muito: "por causa da preconcepção popular, muitas vezes fundamentadas, ainda que inconscientemente, em argumentos racistas e/ou eurocêntricos.

Quando o Amazon Studios divulgou a primeira imagem de Arondir, um Elfo da nova série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, que seria interpretado por Ismaél, um ator preto, começaram a chover comentários alegando que a empresa estaria "deturpando" as obras de J.R.R. Tolkien em prol de uma cultura "woke", colocando atores negros para interpretar personagens que eram brancos nos livros. Comentários esses que eram sempre baseados em puro racismo ou, em outros casos, em simples desconhecimento das obras originais.

Acontece que simplesmente dizer para essas pessoas que "não há qualquer menção nos livros do legendário de que os Elfos eram todos brancos ou de não havia Elfos negros" não foi o suficiente. Mesmo dizendo que não havia qualquer menção neste sentido, estas pessoas insistiam em forçar uma interpretação deturpada dos livros ou das intenções do autor para justificarem que Elfos negros realmente não existiam.

Sendo assim, esse é o motivo deste levantamento ter sido criado. Já que simplesmente dizer que Tolkien nunca havia falado nada neste sentido não foi o suficiente, e decidi tentar refutar, um a um, todos os argumentos que eu encontrei internet afora contra a presença de Elfos negros no legendário da Terra-média.

Abaixo, os argumentos mais comuns que encontrei e, em seguida, a minha explicação do porquê de esse argumento não fazer sentido. Tudo, é claro, muito bem fundamentado nos próprios livros.

Rebatendo argumentos

1) "Em O Senhor dos Anéis Tolkien deixou claro que Elfos negros não existem, pois, ao final do Apêndice F, disse que 'eram belos, de pele clara e de olhos cinzentos'."

Não é bem assim. De fato há essa menção em O Senhor dos Anéis, mas trata-se de uma frase tirada de contexto, conforme já extensivamente explicado por Christopher Tolkien (filho de J.R.R. Tolkien e seu herdeiro literário) em O Livro dos Contos Perdidos 1 (o 1.º volume da coleção A História da Terra-média).

Em O Senhor dos Anéis, nós temos o seguinte trecho:

Elfos foi usado para traduzir tanto Quendi, "os falantes", o nome alto-élfico de toda a sua espécie, e Eldar, o nome dos Três Clãs que buscaram o Reino Imortal e ali chegaram no começo dos Dias (exceto apenas pelos Sindar). (...) Eram altos, de pele clara e olhos cinzentos, apesar de terem as madeixas escuras, exceto na casa dourada de Finarfin;11 O Senhor dos Anéis (Apêndice F, II. Da Tradução)

Já em O Livro dos Contos Perdidos 1 (A História da Terra-média I), nós temos a versão completa deste rascunho:

Em um rascunho do parágrafo final do Apêndice F de O Senhor dos Anéis, ele [Tolkien] escreveu:

Às vezes (não neste livro) tenho usado "Gnomos" por Noldor e "gnômico" por noldorin. Fiz isso porque (...), para alguns, "Gnomo" ainda sugerirá conhecimento. Ora, o nome alto-élfico desse povo, Noldor, significa Aqueles que Sabem; pois dentre os três clãs dos Eldar, desde seu começo, os Noldor sempre se distinguiram, tanto por seu conhecimento das coisas que são e foram neste mundo, quanto por seu desejo de conhecer mais. Porém, não se assemelhavam de nenhum modo aos Gnomos da teoria erudita, nem da imaginação popular; e agora abandonei essa representação por demasiado enganosa. Pois os Noldor pertenciam a uma raça elevada e bela, os Filhos mais velhos do mundo, que agora se foram. Eram altos, de pele clara e olhos cinzentos, e suas madeixas eram escuras, exceto na casa dourada de Finrod […]

No último parágrafo do Apêndice F, conforme publicado, a referência aos "Gnomos" foi removida, e substituída por um trecho explicando o uso da palavra Elves [Elfos] como tradução de Quendi e Eldar. (…) Portanto, essas palavras que descrevem características do rosto e dos cabelos foram escritas, na verdade, apenas sobre os Noldor, e não sobre todos os Eldar: de fato os Vanyar tinham cabelos dourados, e foi da mãe vanyarin de Finarfin, Indis, que ele e seus filhos Finrod Felagund e Galadriel herdaram os cabelos dourados que os distinguiam entre os príncipes dos Noldor. Mas sou incapaz de determinar como essa extraordinária corrupção do sentido surgiu.*

  • O nome Finrod no trecho ao final do Apêndice F está incorreto: Finarfin era Finrod e Finrod era Inglor até a segunda edição de O Senhor dos Anéis, e, na ocasião, a alteração não foi feita.

O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido)

Como mencionado por Christopher, o erro foi corrigido na segunda edição de O Senhor dos Anéis, a partir da qual essa frase conta com uma nota de rodapé na qual é explicado tratar-se de uma descrição exclusiva para o clã dos Elfos Noldorin, e não para os Elfos como um todo.

11Estas palavras que descrevem caracteres de rosto e cabelos aplicavam-se, de fato, apenas aos Noldor. [N. E.] O Senhor dos Anéis (Apêndice F, II. Da Tradução)

Nesse sentido, considerando que a segunda edição foi publicada em 1966, alguém querer se utilizar desse trecho para justificar que todos os Elfos do legendário seriam brancos me parece, no mínimo, ingênuo ou mal-intencionado.

2) "A Terra-média representa a Europa nórdica e, por isso, não teria como haver personagens negros."

Outro argumento que eu constantemente vejo por aí é o de que a Terra-média representaria a Europa “nórdica” e que, por isso, não teria como haver personagens negros.

Em primeiro lugar, existiam sim pessoas negras na Europa setentrional, mas eu não vou adentrar nessa questão aqui, posto que quem está reclamando disso claramente não vai aceitar essa realidade.

Em segundo lugar, se você verdadeiramente se considera um fã de Tolkien, pare de se utilizar da palavra “nórdica”, pois o próprio Tolkien deixou clara diversas vezes em suas cartas a sua total aversão a essa palavra que, segundo ele mesmo, estava associada a doutrinas racistas.

Tolkien odiava a palavra “nordic”, sendo que, para ele, a gente deveria se utilizar do termo “northern”, que significa algo como “do norte” ou “setentrional”. Um exemplo em que ele fala sobre sua aversão pela palavra “nordic” é nas Cartas n.º 29 e 45 do livro As Cartas de J.R.R. Tolkien, na qual ele criticou o nazismo por se apropriar, perverter e arruinar a essência “setentrional” em favor de doutrinas raciais não-científicas.

[A Allen & Unwin negociara a publicação de uma tradução alemã de O Hobbit com a Rütten & Loening de Potsdam. Essa firma escreveu a Tolkien perguntando se ele era de origem “arisch” (ariana).]

Devo dizer que a carta em anexo da Rütten e Loening é um tanto rígida. Sofro essa impertinência por possuir um nome alemão ou as leis lunáticas deles exigem um certificado de origem “arisch” de todas as pessoas de todos os países?

Pessoalmente, eu estaria inclinado a recusar o fornecimento de qualquer Bestätigung [“confirmação”] (embora por acaso eu possa fazê-lo) e deixar que uma tradução alemã fosse suspensa. Seja como for, devo opor-me fortemente à aparição impressa de qualquer declaração semelhante. Não considero a (provável) ausência total de sangue judeu como necessariamente meritória; tenho muitos amigos judeus, e lamentaria asseverar a noção de que aprovo a totalmente perniciosa e não científica doutrina racial.

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 29)

Passei a maior parte da minha vida, desde que eu tinha sua idade, estudando assuntos germânicos (no sentido geral que inclui a Inglaterra e a Escandinávia). [...] Você tem de compreender o bem nas coisas para detectar o verdadeiro mal. [...] suponho que sei melhor do que a maioria das pessoas qual é a verdade sobre esse absurdo “nórdico”. De qualquer modo, tenho nesta Guerra um ardente ressentimento particular [...] contra aquele maldito tampinha ignorante chamado Adolf Hitler [...] que está arruinando, pervertendo, fazendo mau uso e tornando para sempre amaldiçoado aquele nobre espírito setentrional, uma contribuição suprema para a Europa, que eu sempre amei e tentei apresentar sob sua verdadeira luz.

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 45)

Sendo assim, em vez de falar “Europa nórdica”, fale “Europa setentrional”, em respeito ao próprio Tolkien, que tinha aversão à conotação racista que a palavra “nórdica” tinha.

Em terceiro lugar, muito embora seja comum ouvirmos a história de que o plano de J.R.R. Tolkien era o de criar uma mitologia para a Inglaterra, de modo que seu legendário se passaria numa Europa nórdica, não é tão simples quanto parece.

Isso só era verdade para O Livro dos Contos Perdidos, escrito por Tolkien entre os anos 1917 e 1920, que é a primeira versão do que muito mais tarde viria a ser O Silmarillion como o conhecemos, e não para O Senhor dos Anéis (finalizado em 1954) nem para O Silmarillion posterior (não finalizado em vida).

Em O Livro dos Contos Perdidos, a relação com a Inglaterra era clara e direta, mas, ao longo dos anos, conforme seu legendário foi evoluindo, essa relação foi deixada totalmente de lado por Tolkien, tendo ele deixado claro ainda em vida, 50 anos depois de escrever os Contos Perdidos, que isso não era mais aplicável à sua mitologia.

Em uma carta escrita por Tolkien em 08/02/1967, na qual ele traz comentários pontuais sobre a entrevista feita com Charlotte e Denis Plimmer, Tolkien deixa claro que a Terra-média não representa a Europa nórdica e que essa não era a sua intenção.

[O texto abaixo é de trechos do comentário de Tolkien, enviado a Charlotte e Denis Plimmer, sobre o rascunho da entrevista destes com ele. As passagens em itálico são citações do rascunho deles.]

A Terra-média .... corresponde espiritualmente à Europa Nórdica.

Nórdica não, por favor! Uma palavra pela qual pessoalmente tenho aversão; está associada, apesar de ser de origem francesa, com teorias racistas. Geograficamente, setentrional em geral é melhor. Mas uma análise mostrará que mesmo essa palavra é inaplicável (geográfica ou espiritualmente) à “Terra-média”. Esta é uma palavra antiga, não inventada por mim, como a consulta a um dicionário como o Shorter Oxford mostrará. Significava as terras habitáveis de nosso mundo, situadas no meio do Oceano circundante. [...]

Auden declarou que para mim “o Norte é uma direção sagrada”. Isso não é verdade. O noroeste da Europa, onde tenho vivido (e a maioria de meus ancestrais viveu), tem minha afeição, como deve ter o lar de um homem. Amo sua atmosfera e sei mais de suas histórias e idiomas do que sei de outras partes; mas não é “sagrado”, nem exaure minhas afeições. Por exemplo, tenho um amor em particular pela língua latina e, entre seus descendentes, pelo espanhol. Uma simples leitura das sinopses deveria deixar claro que isso não é verdadeiro para minha história. O Norte era a sede das fortalezas do Diabo. O progresso da história termina no que é muito mais parecido com o restabelecimento de um Sacro Império Romano efetivo com sua sede em Roma do que qualquer coisa que seria planejada por um “nórdico”.

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 294)

3) "'Elfo' é uma palavra cuja etimologia infere a ideia de 'branco'."

Muito também se tem falado de que a palavra “Elfo” (no caso, Elf) tem origem nos antigos mitos e folclores germânicos e nórdicos e estava intimamente associada à ideia de branco, sendo que o radical nórdico de Elf, no caso alv, seria o mesmo radical de palavras como “alpes” ou “albino”.

Em primeiro lugar, a etimologia de Elf não é tão simples assim.

Sugere-se que ela tenha origem no *albiz proto-germânico, que também foi a fonte de palavras posteriores como o alp alemão (de onde vem, por exemplo, alpes e albino), mas isso não implica dizer que a palavra Elf em si tenha ligação com a cor branca, até porque Elf precede ao alp alemão.

Além do *albiz proto-germânico, Elf supostamente veio também do antigo inglês, assim como ælf e ylfe, que significavam algo como fada, goblin ou íncubus. Nos anos 1550, essas palavras eram usadas figurativamente como uma "pessoa malvada".

Elf e ælf sobreviveram até o inglês médio, tornando-se enfim elf, elves e elven (as mesmas palavras utilizadas por Tolkien em seu legendário).

Fonte: Online Etymology Dictionary

Na idade média, os Elfos eram confundidos em certo grau com fatas (nome genérico para as fadas), sendo que isso inclusive é mencionado pelo próprio Tolkien em seu ensaio "Sobre Estórias de Fadas", presente no livro Árvore e Folha, onde ele ressalta que a palavra Elf precede os antigos mitos e folclores germânicos e nórdicos.

O ser diminuto, elfo ou fada, é (suspeito), na Inglaterra, em grande parte, um produto sofisticado do devaneio literário.2

2Estou falando de transformações que ocorreram antes do aumento do interesse pelo folclore de outros países. As palavras inglesas, tais como elf [elfo], receberam por muito tempo a influência do francês (língua da qual derivam as palavras fay [fata, fada] e Faërie, fairy [Feéria, fada]); mas, em épocas posteriores, por meio de seu uso em traduções, tanto fada quanto elfo adquiriram muito da atmosfera dos contos alemães, escandinavos e celtas (...).

Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

A influência deles não ficou restrita à Inglaterra. Os termos alemães Elf, Elfe parecem ser derivados de Sonho de uma Noite de Verão, na tradução de Wieland (1764). Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

Fada, como um substantivo mais ou menos equivalente a elfo, é uma palavra relativamente moderna, que mal chega a ser usada até o período Tudor [de 1485 a 1603]; Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

Estórias que estão de fato preocupadas primariamente com “fadas”, isto é, com criaturas que poderiam também, em inglês moderno, ser chamadas de “elfos”, são relativamente raras (...). Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

A definição de uma estória de fadas — o que é, ou o que deveria ser — não depende, então, de qualquer definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas, mas da natureza de Feéria: o próprio Reino Perigoso e o ar que sopra naquele país. Não tentarei defini-lo, ou descrevê-lo diretamente. Isso não pode ser feito. Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

E, se descendem de nós mesmos, pode-se recordar que um antigo pensador inglês certa vez afirmou que os ylfes, os próprios elfos, descendiam, por meio de Caim, de Adão. Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

Todas as três coisas, invenção independente, herança e difusão, evidentemente tiveram um papel na produção da intrincada teia da Estória. Hoje está além de toda habilidade que não seja a dos elfos destrinchá-la. Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

Nesse sentido, não há como se ter certeza qual o significado original de palavra Elf, sendo que o próprio Tolkien nem sequer tenta lhe dar um significado original em seu ensaio (jamais fazendo qualquer menção à ideia de branco), atentando-se mais para "o que define a estórias de fadas/elfos" do que para "o que define os elfos" em si.

Aliás, ressalto aqui que o próprio Tolkien disse que a palavra Elfo precede aos mitos germânicos, tendo sido apenas em épocas posteriores que a ideia de Elfo adquiriu muito da atmosfera dos contos alemães, escandinavos e celtas (Árvore e Folha, p. 19).

Em segundo lugar, ainda que houvesse provas de que Elf estava intimamente associado à ideia de branco (o que, ressalto, não há), não acredito que isso, por si só, significaria que todos os Elfos do legendário de Tolkien sejam brancos.

No próprio Senhor dos Anéis, bem como em cartas escritas por Tolkien, ele deixa claro que Elfo foi uma palavra pré-existente que ele optou por se utilizar como tradução de Quendi (palavra élfica para se referenciar aos Elfos), mas que essas duas palavras não eram, por si só, equilvantes.

Elfos foi usado para traduzir tanto Quendi, 'os falantes', o nome alto-élfico de toda a sua espécie, e Eldar, o nome dos Três Clãs que buscaram o Reino Imortal (...). De fato, essa palavra antiga era a única disponível (...). Mas ela minguou, e a muitos pode agora sugerir fantasias delicadas ou tolas, tão diferentes dos Quendi de outrora (...).

  • O Senhor dos Anéis (Apêndice F, II. Da Tradução)

O que você pede é O Silmarillion, que é na prática uma história dos Eldalië (ou Elfos, por uma tradução não muito precisa), de sua ascensão até a Última Aliança e a primeira derrubada temporária de Sauron [...].

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 114)

Em uma carta escrita para Hugh Brogan em 18/09/1954, Tolkien deixa evidente que se arrependeu de ter se utilizado da palavra "Elfo" por acreditar que ela estava cheio de vícios que são demais para se superar.

Além disso, agora lamento profundamente ter usado Elfos, embora essa seja uma palavra em ancestralidade e significado original suficientemente adequada. Porém, a desastrosa depreciação dessa palavra, na qual Shakespeare desempenhou um papel imperdoável, de fato a deixou sobrecarregada de tons deploráveis, que são demasiados para se superar. Espero ser capaz de incluir nos Apêndices do Vol. III uma nota “Sobre a tradução”, na qual a questão das equivalências e dos meus usos possa ficar clara. Minha dificuldade é que, uma vez que tentei apresentar uma espécie de legendário e história de uma “época esquecida”, todos os termos específicos estavam em uma língua estrangeira, e não existem equivalentes precisos em inglês.

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 151)

Nesse sentido, a gente não pode esquecer que Tolkien era um filólogo, motivo pelo qual ele tinha um vasto conhecimento do vocabulário e da etimologia de diversas línguas, não ficando preso ao convencionado na sua época.

Justamente por esse motivo, Tolkien deixou claro diversas vezes que se arrependeu muito de ter se utilizado de palavras como Elfo, Gnomo e Goblin - todas pelo mesmo motivo de que essas palavras estavam viciadas com outros significados.

Só para explicar para quem porventura não conheça, Gnomos era uma palavra utilizada por Tolkien nas primeiras versões de seu legendário para representar os Noldor, um dos Três Clãs dos Elfos.

Já Goblins (Gobelins, na nova tradução) significa exatamente o mesmo que Orcs (Orques, na nova tradução), sendo apenas que Goblin era uma palavra usada mais pelos Hobbits e Orc, mais pelas outras raças.

“Às vezes (não nesse livro) tenho usado ‘Gnomos’ por Noldor e ‘gnômico’ por noldorin. Fiz isso porque, para alguns, ‘Gnomo’ ainda sugerirá conhecimento. Ora, o nome alto-élfico desse povo, Noldor, significa Aqueles que Sabem; pois dentre os três clãs dos Eldar, desde seu começo, os Noldor sempre se distinguiram, tanto por seu conhecimento das coisas que são e foram neste mundo, quanto por seu desejo de conhecer mais. Porém não se assemelhavam de nenhum modo aos Gnomos da teoria erudita, nem da imaginação popular, e agora abandonei essa representação por demasiado enganosa.”

  • O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido)

Nenhum resenhista (que eu tenha visto), embora todos tenham usado cuidadosamente a forma correta dwarfs [anões], comentou a respeito do fato (do qual me tornei consciente apenas através das resenhas) de eu usar no decorrer do livro o plural “incorreto” dwarves [anãos]. [...] Talvez seja permitido ao meu dwarf [anão] — uma vez que ele e o Gnomo3 são apenas traduções em equivalentes aproximados de criaturas com diferentes nomes e funções muito diferentes em seu próprio mundo [...].

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 17)

[...] e, de qualquer forma, elfo, gnomo, gobelim e anão são apenas traduções aproximadas dos nomes em élfico antigo para seres de raças e funções não exatamente iguais.

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 25)

Sua preferência por gobelins a orques envolve um assunto maior e uma questão de gosto, e talvez um pedantismo histórico de minha parte. Pessoalmente prefiro Orques (uma vez que essas criaturas não são “gobelins”, nem mesmo os gobelins de George MacDonald, aos quais se assemelham de certa forma).

  • As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 151)

4) "Tolkien nunca mencionou um Elfo de pele negra; se existissem, ele teria mencionado algum." Em primeiro lugar, na primeira versão de seu legendário, quando O Silmarillion ainda era chamado de "O Livro dos Contos Perdidos" e havia uma associação direta com a Inglaterra, como eu já comentei, Tolkien chegou sim a descrever um Elfo como tendo pele negra - mais especificamente Maeglin (na época chamado de Meglin), que era filho de Aredhel (uma Elfa 75 % Noldo e 25 % Vanya) e Eöl (um Elfo, ao que parece, 100 % Sinda).

Ora, o emblema de Meglin era uma Toupeira negra e ele era grande entre os que trabalhavam em pedreiras e um chefe dos que escavava em busca de minério, e muitos desses pertenciam à sua casa. Menos belo era ele do que muitos desse povo bonito, moreno e de ânimo não muito gentil, de modo que lhe tinham pouco amor (...). A Queda de Gondolin (O Conto Original)

Com ela veio seu filho, Meglin, e ele foi lá recebido por Turgon como filho de sua irmã e, embora tivesse metade de sangue dos Elfos-escuros, foi tratado como um príncipe da linhagem de Fingolfin. Era moreno, mas formoso, sábio e eloquente e sagaz na conquista dos corações e mentes dos homens. A Queda de Gondolin (A História Contada no Quenta Noldorinwa)

Como já mencionei anteriormente, Tolkien estabeleceu que os Noldor eram todos brancos, mas Meglin, embora fosse filho da (75 %) Noldo Aredhel, também era filho do Sinda Eöl. O tom de pele de Eöl nunca foi mencionado (nem mesmo nas versões anteriores do conto), mas isso deixa a entender que Meglin teria puxado de seu pai Sinda a sua pele escura (Tolkien nunca estabeleceu uma regra quanto ao tom de pele dos Elfos Sindarin, de modo que alguns personagens poderiam ser brancos e outros, negros). E, antes que alguém questione o significado de "moreno", ressalto desde já que a palavra originalmente utilizada por Tolkien foi "swart", conforme consta ao final do referido livro, no glossário de termos arcaicos e suas traduções para o português (A Queda de Gondolin, p. 282).

Now the sign of Meglin was a sable Mole, and he was great among quarrymen and a chief of the delvers after ore; and many of these belonged to his house. Less fair was he than most of this goodly folk, swart and of none too kindly mood, so that he won small love (...). The Fall of Gondolin (The Original Tale)

With her came her son Meglin, and he was there received by Turgon as his sister-son, and though he was half of Dark-elven blood he was treated as a prince of Fingolfin’s line. He was swart but comely, wise and eloquent, and cunning to win men’s hearts and minds. The Fall of Gondolin (The Story Told in the Quenta Noldorinwa)

Para quem não sabe, swart (e suas variantes swarty e swarthy) é uma palavra do inglês arcaico, datada dos anos 1570, que, segundo o Online Etymology Dictionary, significa "dark-colored, especially of skin" ("de cor escura, especialmente com relação à pele"). Esta é, literalmente, sua única definição. A título de curiosidade, swart/swarthy foi a mesma palavra que Tolkien usou para descrever os Homens Haradrim em O Senhor dos Anéis. Os Haradrim, também chamados de Sulistas (Harad = Sul), foram aliados de Sauron na Guerra do Anel e todos os leitores concordam que eles eram Homens negros - tanto é que muitas pessoas que discordaram da existência de um Elfo negro na série usaram como justificativa de que não tinham problema com personagens negros em si o fato de que não se importariam se tivessem Homens Sulistas negros (em vez de Elfos negros), já que Tolkien teria descrito os Sulistas como negros nos livros (swarthy, no original).

'It is close on ten leagues hence to the east-shore of Anduin,' said Mablung, 'and we seldom come so far afield. But we have a new errand on this journey: we come to ambush the Men of Harad. Curse them!'

'Aye, curse the Southrons!' said Damrod. (...)

Sam, eager to see more, went now and joined the guards. He scrambled a little way up into one of the larger of the bay-trees. For a moment he caught a glimpse of swarthy men in red running down the slope some way off with green-clad warriors leaping after them, hewing them down as they fled.

The Lord of the Rings (The Two Towers, Book IV, 4, Of Herbs and Stewed Rabbit)

"São cerca de dez léguas daqui até a margem leste do Anduin," disse Mablung, "e raramente chegamos tão longe. Mas temos uma nova missão nesta jornada: viemos emboscar os Homens de Harad. Malditos sejam!"

"Sim, malditos sejam os Sulistas", disse Damrod. (...)

Sam, ávido para ver mais, foi se juntar aos guardas. Engatinhou mais para cima, subindo em um dos loureiros maiores. Por um momento teve um vislumbre de homens tisnados, trajados de vermelho, que corriam encosta abaixo a certa distância dali, com guerreiros de verde que saltavam atrás deles, abatendo-os enquanto fugiam.

O Senhor dos Anéis (As Duas Torres, Livro IV, 4. De Ervas e Coelho Ensopado)

A discussão sobre racismo nas obras de Tolkien é muito complexa e não vou adentrar aqui (nota-se que Tolkien diz que Meglin era "moreno, mas formoso"). Aos interessados, há excelentes vídeos no YouTube dissecando a evolução pessoal de Tolkien ao longo das décadas, feitos por pessoas que têm muito mais propriedade para falar sobre o assunto do que eu (como, por exemplo, esse vídeo do Clube Literário Tolkieniano de Brasília).

Em síntese, nos Contos Perdidos, que Tolkien começou a escrever em 1917 (a título de comparação, O Senhor dos Anéis foi publicado apenas em 1954 e Tolkien faleceu em 1973), ele associava muito a cor negra com a ideia de maldade.

Ao longo de sua vida, conforme ia amadurecendo como pessoa, Tolkien foi deixando essa perspectiva de lado e "corrigindo" seus antigos escritos, retirando essas associações quando podia.

Na versão mais recente do conto da Queda de Gondolin (vide a presente no Silmarillion publicado) essa menção à pele de Maeglin foi alterada por Tolkien, passando ele a descrever Maeglin como tendo pele branca.

Quando Maeglin chegou à sua estatura plena, assemelhava-se em rosto e forma antes à sua parentela dos Noldor, mas em ânimo e mente era o filho de seu pai. (...) Era alto e de cabelos negros; seus olhos eram escuros, porém, luzentes e agudos como os olhos dos Noldor, e sua pele era branca. O Silmarillion (Quenta Silmarillion, 16. De Maeglin)

Sobre essa alteração, é importante salientar aqui que, como alguns devem ter percebido, na versão primária do conto, quando Meglin era negro, Tolkien apenas salientou suas diferenças quanto aos Elfos Noldorin, enquanto que na versão posterior do conto, quando Maeglin se tornou branco, Tolkien acrescentou a informação de que ele "assemelhava-se em rosto e forma antes à sua parentela dos Noldor".

Isto, por si só, inclusive corrobora com o já trazido no Apêndice F de O Senhor dos Anéis, quando Tolkien diz que os Noldor eram um clã notório por ter membros de pele branca.

Nesse sentido, ainda que a cor da pele de Maeglin tenha sido alterada na versão posterior do conto, o fato de que a versão antiga trazia ele como negro é prova de que, para Tolkien, Elfos de pele negra eram plausíveis e possíveis em seu universo, não sendo isso um problema para as leis por ele estabelecidas.

Em segundo lugar, com essa alteração no conto da Queda de Gondolin, a gente até pode dizer que nas versões posteriores de seu legendário Tolkien de fato nunca mencionou especificamente um Elfo como tendo pele negra, mas isso por si só não é capaz de implicar que eles não existiam (e quem acha que significa precisa estudar um pouco de hermenêutica).

Tolkien sempre deixou claro que ele não estava criando essas histórias, mas apenas traduzindo textos por ele encontrados, que teriam sobrevivido a todas essas eras. Desse modo, Tolkien sempre teve a mentalidade de que ele não estava criando, mas sim descobrindo essas histórias.

Sobre a ilha de Númenor, por exemplo, Tolkien diz que é muito difícil precisarmos qual era sua cultura porque pouquíssimos escritos sobreviveram à sua queda.

Visto que todas esses assuntos eram estudados pelos homens de saber em Númenor, e muitas histórias naturais e geografias precisas devem ter sido compostas, aparentemente elas, como quase tudo o mais das artes e ciências de Númenor em seu apogeu, desapareceram na queda. A Natureza da Terra-média (Parte Três: O Mundo, Suas Terras e Seus Habitantes, 13. Da Terra e dos Animais de Númenor)

Como foi dito, não é fácil descobrir quais eram os animais, aves e peixes que já habitavam a ilha antes da chegada dos Edain, e quais foram trazidos por eles. O mesmo vale para as plantas. A Natureza da Terra-média (Parte Três: O Mundo, Suas Terras e Seus Habitantes, 13. Da Terra e dos Animais de Númenor)

Nessa mesma linha, falando sobre o parentesco de personagens, Tolkien deixa claro que não devemos interpretar o seu silêncio como sinônimo de inexistência de um filho ou parente para certo personagem, pois os textos élficos e humanos que teriam sobrevivido ao longo das eras costumavam mencionar apenas os personagens mais importantes, omitindo certos aspectos.

Deve-se recordar, no entanto, ao considerar os registros e as lendas do passado, que estes (em especial os feitos ou transmitidos pelos Homens) muitas vezes mencionam ou nomeiam apenas pessoas que desempenham um papel registrado nos eventos, ou que eram ancestrais diretos de tais atores principais. Portanto, não se pode concluir, apenas a partir do silêncio, quer na narrativa quer na genealogia, que determinada pessoa não tinha filhos, ou não mais do que os mencionados. A Natureza da Terra-média (Parte Um: Tempo e Envelhecimento, 4. Escalas de Tempo)

Esses dois pontos, por si só, já deveriam ser suficientes para evidenciar que não é só porque Tolkien não falou sobre um personagem que ele necessariamente não existia. Em outras palavras, não é porque Tolkien nunca descreveu um Elfo como tendo pele negra que nenhum existia.

Sendo assim, com relação a esse ponto, a gente tem duas situações a considerar:

A primeira é a de que Tolkien já descreveu sim um Elfo de pele negra em seu legendário, mais especificamente Maeglin, no conto original da Queda de Gondolin.

E a segunda é a de que, ainda que você queira desconsiderar totalmente a existência de Maeglin como um Elfo negro, já que na versão posterior do conto o seu tom de pele foi alterado, a gente ainda tem a questão de que o próprio Tolkien deixou claro que todas essas histórias se tratam de documentos históricos, de modo que, se um personagem não aparecia nessas histórias, isso não significa que ele não existia, de modo que a gente não deveria interpretar o seu silêncio como sinônimo de inexistência.

4.1) Considerações sobre a diferença entre ser descritivo e ser redundante:

Ademais, ainda que alguém continue focando nesse argumento de que "se Tolkien não falou é porque não existia", levando em consideração apenas as versões posteriores de seu legendário, eu acredito ser importante destacar aqui que Tolkien ser descritivo e Tolkien ser redundante são duas coisas totalmente diferentes.

Em outras palavras, de fato Tolkien sempre foi muito descritivo com seus textos, em especial em se tratando na natureza de seu mundo, mas ele nunca foi redundante nessas descrições.

De fato há alguns personagens élficos que Tolkien especifica como tendo pele clara (como, por exemplo, Galadriel), mas pense comigo: se todos os Elfos fossem brancos, seria necessário Tolkien ser redundante com relação a isso?

Se supostamente já foi estabelecido que todo Elfo é branco, qual a utilidade de Tolkien dizer que Galadriel, uma Elfa, era branca? Nesse caso, uma frase como essa me parece um complemento tão redundante e inútil quanto dizer "subir pra cima".

Por outro lado, se a gente considerar que nem todos os Elfos eram brancos, bem como que o único clã descrito como sendo branco era o clã dos Noldor, sendo que Galadriel era apenas 25 % Noldo, dizer que ela era branca deixa de ser redundante e passa a ser uma descrição totalmente válida.

Repito: Tolkien sempre foi muito descritivo, mas ele nunca foi redundante, e não havia utilidade nenhuma para que ele fosse redundante nessas pouquíssimas descrições de Elfos brancos.

5) Da síntese e da Conclusão

Em síntese,

(i) apenas os Elfos Noldorin foram especificados por Tolkien como tendo pele clara, de modo que essa questão foi deixada em aberto com relação a todos os outros grupos de Elfos;

(ii) Tolkien deixou claro que a Terra-média não representa a Europa nórdica;

(iii) não se sabe ao certo qual o significado original de Elf, conforme o próprio Tolkien deixou claro em seu ensaio "Sobre Estórias de Fadas", não sendo possível precisar se realmente seria relacionado à ideia de "branco", como por alguns sustentado;

(iv) Tolkien disse que a palavra Elfos não era equivalente a Quendi (termo utilizado naquele mundo para se referenciar aos Elfos), tendo Elfo sido a palavra inglesa mais próxima que ele conseguiu encontrar;

(v) Tolkien se arrependeu de usar palavras como Elfo, Gobelim e Gnomo, uma vez que, segundo ele, elas estavam viciadas por outros significados na cultura popular, que não guardavam relação com o pensado em seu universo;

(vi) o silêncio de Tolkien não pode ser interpretado como sinônimo de inexistência, conforme por ele mesmo dito com relação às árvores genealógicas de seu universo;

(vii) nas primeiras versões do conto da Queda de Gondolin, Tolkien chegou a citar um Elfo como tendo pele negra, sendo que, mesmo que essa descrição tenha sido deixada de lado mais tarde, passando a ser omisso quanto ao tom de pele desse personagem em questão, isso prova que Elfos negros não eram um problema para as regras criados por Tolkien para seu universo.

Diante de tudo isso, conclui-se que o único possível desrespeito com relação ao "cânone" estabelecido seria com relação aos Elfos com sangue 100 % Noldorin, que Tolkien especificou como tendo pele clara.

Quanto a todos os outros grupos dos Elfos (que eram vários), ou para descendentes da mistura entre Elfos Noldorin e Elfos de outro clã, não foi estabelecido nenhuma regra, sendo possível que tivessem diferentes tons de pele, como o próprio Maeglin, que era apenas 37,5 % Noldo (e 50 % Sinda e 12,5 % Vanya) e tinha pele escura, provavelmente herdada de seu pai Sinda.