Orelhas Élficas

De Compendium Tolkien
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  • Escrito por Projeto Tolkien em 26/10/2023 (atualizado por último em 14/03/2024).
  • Esse artigo foi retirado do antigo subreddit do Projeto Tolkien e a formatação para que ele melhor se encaixe à wiki ainda está em andamento.

O debate sobre os Elfos da Terra-média terem ou não orelhas pontudas é bem antigo.

Simplificando, J.R.R. Tolkien nunca mencionou em seus livros (O Hobbit e O Senhor dos Anéis) que seus Elfos tinham orelhas pontudas, mas nós temos dois tipos de argumentos que supostamente comprovariam que, mesmo que Tolkien não tenha falado nada, os Elfos da Terra-média tinham sim orelhas pontudas: aquele baseado na cultura popular e aquele baseado nos escritos do próprio autor.

Quanto ao primeiro tipo de argumento, não tem muito segredo: a maioria das pessoas automaticamente supõem que os Elfos de Tolkien têm orelhas pontudas justamente porque todos os Elfos da cultura popular são retratados com orelhas pontudas, então não teria por que os da Terra-média serem diferentes.

Quanto ao segundo tipo de argumento, que é baseado nos escritos do próprio Tolkien, nós temos (i) uma carta do próprio autor, na qual ele fala que os Hobbits tinham orelhas levemente pontudas e "élficas", e (ii) um manuscrito linguístico e etimológico, no qual Tolkien fala que as orelhas dos Elfos eram mais pontudas que a dos Homens.

Contextualizada a discussão, vejamos esses três pontos um de cada vez.

Aviso: Uma versão bem semelhante, mas anterior, desse levantamento foi publicada em formato de vídeo no canal do Projeto Tolkien em 30/10/2023 (você pode assisti-lo clicando aqui).

Elfos na cultura popular

Muito embora seja comum ouvirmos a história de que o plano de Tolkien era o de criar uma mitologia para a Inglaterra, de modo que seu legendário se passaria numa Europa setentrional, a coisa não é tão simples assim.

Isso só era verdade para O Livro dos Contos Perdidos, escrito por Tolkien entre os anos 1916 e 1920, que é a primeira versão do que décadas mais tarde viria a ser O Silmarillion como o conhecemos, sendo ambos muito diferentes um do outro.

Em O Livro dos Contos Perdidos, que a gente conhece nos dois primeiros volumes da coleção A História da Terra-média, a relação com a Inglaterra era clara e direta, sendo que a palavra “Inglaterra”, inclusive, é citada diretamente diversas vezes.

Todavia, ao longo dos anos, conforme seu legendário ia evoluindo, essa relação com a Inglaterra foi deixada totalmente de lado por Tolkien, tendo ele deixado claro ainda em vida, 50 anos após escrever O Livro dos Contos Perdidos, quando O Silmarillion já havia mudado drasticamente, que essa associação à Inglaterra não era mais aplicável à sua mitologia.

É claro que parte de suas inspirações são derivadas de mitos europeus, mas, em uma carta escrita em 1967, apenas seis anos antes de morrer, Tolkien disse com todas as letras que a Terra-média não representava a Europa nórdica nem setentrional, seja geográfica ou espiritualmente.

[O texto abaixo é de trechos do comentário de Tolkien, enviado a Charlotte e Denis Plimmer, sobre o rascunho da entrevista destes com ele. As passagens em itálico são citações do rascunho deles.]

A Terra-média .... corresponde espiritualmente à Europa Nórdica.

Nórdica não, por favor! Uma palavra pela qual pessoalmente tenho aversão; está associada, apesar de ser de origem francesa, com teorias racistas. Geograficamente, setentrional em geral é melhor. Mas uma análise mostrará que mesmo essa palavra é inaplicável (geográfica ou espiritualmente) à “Terra-média”. [...] Mas essa não é uma área puramente “nórdica” em qualquer sentido.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 294) - Grifou-se.

Além do autor reconhecer que, embora isso fosse verdade no início, seu legendário tinha deixado de ter uma relação direta com a Inglaterra e, via de consequência, com a Europa setentrional, ele também deixa claro diversas vezes que “Elfo” foi uma palavra preexistente que ele optou por se utilizar como tradução de Quendi, e que essas duas palavras – Quendi e Elfos – não eram equivalentes.

Só pra esclarecer pra quem porventura não conheça, Quendi significa “os Falantes”, e é a palavra élfica para se referenciar aos Elfos. Tolkien fala sobre essa questão de “Elfos” ser uma tradução não muito precisa de “Quendi”, por exemplo, lá nos Apêndices de O Senhor dos Anéis.

Elfos foi usado para traduzir tanto Quendi, “os falantes”, o nome alto-élfico de toda a sua espécie, e Eldar, o nome dos Três Clãs que buscaram o Reino Imortal […]. De fato, essa palavra antiga era a única disponível […]. Mas ela minguou, e a muitos pode agora sugerir fantasias delicadas ou tolas, tão diferentes dos Quendi de outrora […].
O Senhor dos Anéis (Apêndice F; II. Da Tradução) - Grifou-se.

Isso também fica explícito em várias cartas escritas por J.R.R. Tolkien, nas quais ele diz, por exemplo:

E, de qualquer forma, elfo, gnomo, gobelim e anão são apenas traduções aproximadas dos nomes em Élfico Antigo para seres de raças e funções não exatamente iguais.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 25) - Grifou-se

O que você pede é O Silmarillion, que é na prática uma história dos Eldalië (ou Elfos, por uma tradução não muito precisa), de sua ascensão até a Última Aliança e a primeira derrubada temporária de Sauron [...].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 114) - Grifou-se

Por trás de minhas histórias há agora um nexo de idiomas (a maioria apenas estruturalmente esboçada). Mas àquelas criaturas que em inglês chamo enganosamente de Elfos são designados dois idiomas relacionados bastante completos.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 131) - Grifou-se

Tenho dificuldade em encontrar nomes ingleses para criaturas mitológicas com outros nomes, uma vez que as pessoas não “aceitariam” uma série de nomes Élficos [como “Quendi” ou “Eldar” para os Elfos, por exemplo], e prefiro que elas aceitem minhas criaturas lendárias mesmo com as falsas associações da “tradução” do que não as aceitem de modo algum.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 156) - Grifou-se

Dito isso, não podemos nos esquecer de que Tolkien era um filólogo e tinha um vasto conhecimento do vocabulário e da etimologia de diversas línguas, não ficando preso ao convencionado popularmente na sua época.

Justamente por esse motivo, Tolkien deixou claro diversas vezes que se arrependeu muito de ter se utilizado não só da palavra Elfo, como também de palavras como Gnomo, Gobelim e até Anão – todas pelo mesmo motivo de que essas palavras estavam viciadas com outros significados na cultura popular e não guardavam uma relação precisa com as criaturas originais de seu legendário.

Só para explicar para quem porventura não conheça, Gnomos era como Tolkien chamava os Noldor, um dos três clãs élficos, lá nas primeiras versões de seu legendário, vide o já citado O Livro dos Contos Perdidos.

Já Gobelins significa exatamente o mesmo que Orques, sendo apenas que Gobelim era uma palavra usada mais pelos Hobbits e Orque, mais pelas outras raças.

Sobre isso, algumas citações:

Às vezes (não neste livro) tenho usado "Gnomos" por Noldor e "gnômico" por noldorin. […] Porém, não se assemelhavam de nenhum modo aos Gnomos da teoria erudita, nem da imaginação popular; e agora abandonei essa representação por demasiado enganosa.
O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido) - Grifou-se

Nenhum resenhista (que eu tenha visto), embora todos tenham usado cuidadosamente a forma correta dwarfs [anões], comentou a respeito do fato (do qual me tornei consciente apenas através das resenhas) de eu usar no decorrer do livro o plural “incorreto” dwarves [anãos]. [...] Talvez seja permitido ao meu dwarf [anão] — uma vez que ele e o Gnomo3 são apenas traduções em equivalentes aproximados de criaturas com diferentes nomes e funções muito diferentes em seu próprio mundo [...]. O verdadeiro plural “histórico” de dwarf (como teeth [dentes] de tooth [dente]) é dwarrows [ananos], de qualquer modo: sem dúvida uma bela palavra, mas um tanto arcaica demais. No entanto, gostaria que eu tivesse usado a palavra dwarrow [anano].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 17) - Grifou-se

Sua preferência por gobelins a orques envolve um assunto maior e uma questão de gosto, e talvez um pedantismo histórico de minha parte. Pessoalmente prefiro Orques (uma vez que essas criaturas não são “gobelins”, nem mesmo os gobelins de George MacDonald, aos quais se assemelham de certa forma).
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 151) - Grifou-se

Sendo assim, não dá para nós simplesmente jogarmos as preconcepções populares (seja da nossa época seja da época de Tolkien) em cima das criaturas originais criadas pelo autor, pois, embora ele tenha se utilizado de nomes comuns a nós, ele deixou claro diversas vezes que eles foram usados apenas como traduções aproximadas dos nomes de criaturas bem diferentes e, em todos os casos, inclusive se arrependeu de ter usado esses nomes.

Como relação a Gnomos, que, como eu comentei, era como J.R.R. Tolkien chamava os Elfos noldorin nas primeiras versões de seu legendário, a palavra não tinha relação nenhuma com as criaturas folclóricas diminutas que estamos acostumados a ver.

O “gnomo” que nós estamos tão acostumados na cultura popular vem de Paracelso, um escritor suíço que, no século XVI, usou essa palavra como um sinônimo de “pigmeu”. Já o “gnomo” de Tolkien vem de uma origem muito mais antiga, mais especificamente o “gnōmē” grego, que significava algo como “pensamento” ou “inteligência”.

O próprio Tolkien comenta sobre essa distinção naquele mesmo trecho que eu já citei mais atrás, na qual ele diz que, embora seus Gnomos não tivessem nada a ver com os gnomos da cultura popular, sendo apenas aquele clã dos Quendi que mais se distinguiam por seu conhecimento e sua inteligência, ele acabou abandonando essa palavra ao ver que ela estava causando muita confusão desnecessária, já que ela chegou a aparecer na primeira edição de O Hobbit.

Seja lá o que Paracelso tenha pensado (se é que ele realmente inventou o nome), para alguns, “Gnomo” ainda sugerirá conhecimento. Ora, o nome alto-élfico desse povo, Noldor, significa Aqueles que Sabem; pois dentre os três clãs dos Eldar, desde seu começo, os Noldor sempre se distinguiram, tanto por seu conhecimento das coisas que são e foram neste mundo, quanto por seu desejo de conhecer mais.
O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido)

Esse é um ótimo exemplo do porquê de ser tão difícil tentarmos associar as palavras utilizadas por J.R.R. Tolkien, um filólogo, com a noção que nós temos dessas mesmas palavras na cultura popular.

Quanto especificamente à palavra Elfos, a situação é um pouquinho mais complicada que a do Gnomo, pois, enquanto Gnomo nós temos exatamente os dois significados originais – onde um vem do grego e o outro vem de um escritor suíço –, no caso de “Elfo” a gente não tem tanta certeza quanto à sua exata origem e seus significados são muito mais genéricos.

Se você prestou atenção nos trechos citados anteriormente, tem dois deles nos quais Tolkien fala que "Elfos” era uma palavra "em ancestralidade e significado original" suficientemente adequada, mas que seu significado na cultura popular e na teoria erudita mudou drasticamente ao longo dos anos, motivo pelo qual ele se arrependeu de tê-la usado como tradução de Quendi.

Para quem não sabe, Elfos e Fadas são palavras tidas em muitos casos como sinônimas uma da outra, embora possa haver uma certa distinção. O próprio Tolkien às vezes usa Elfos e Fadas de uma forma meio permutável e às vezes faz distinção entre as duas.

Quanto à palavra Elfo (ou, no caso, Elf), o Online Etymology Dictionary sugere possíveis origens, sendo que, a título de exemplo, algumas delas são: o elf, ælf e ylfe do inglês antigo (cada um derivado de um dialeto específico), o hipotético *albiz proto-germânico, e por aí vai.

Mas, em resumo, todas essas palavras tinham significados muito parecidos, sendo que, na sua origem, Elfo costumava representar seres sobrenaturais, em especial “sprite, fairy, goblin e incubus”.

Quanto a “sprite”, não temos uma palavra portuguesa que tenha derivado diretamente dela, mas ela pode ser traduzida basicamente como “espírito”, já que a própria etimologia de “sprite” sugere que ela tenha vindo do latim “spiritus”. Quanto a “goblin”, essa palavra significava basicamente “um demônio, um íncubo, uma fada feia e malvada, ou um espírito”, e aqui a gente já começa a ver muita repetição nas definições dessas palavras. Quanto a “incubus”, ela significava “um demônio ou ser imaginário que causava pesadelos”. Quanto a “fairy”, ela nada mais é do que “fada”, que representava um cavaleiro lendário ou sobrenatural.

Sendo assim, nós vemos que, ao menos originalmente, antes da difusão na cultura popular, Elfo, Fada, Espírito, Gobelim e Íncubo significavam mais ou menos a mesma coisa, sendo que o termo fairy (“fada”) é o que mais se repete na etimologia de todas essas palavras.

Segundo o Century Dictionary, Elfo e Fada eram basicamente os mesmos seres, sendo apenas que Elfo era geralmente mais jovem e frequentemente mais malvado do que uma Fada.

Quanto à etimologia de fairy (“fada”) em si, a palavra original era, na verdade, “faerie” (que vem do francês antigo e é traduzida aqui no Brasil como Feéria), que era o nome dado especificamente ao reino em que viviam criaturas sobrenaturais ou lendárias. Sem assim, podemos traduzir Faerie como "Feéria", "Terra das Fadas", "Terra dos Elfos" ou "Reino Perigoso".

Com o decorrer do tempo, faerie (“feéria”) se tornou fairy (“fada”) e passou a ser utilizado, via de consequência, como o nome dessas criaturas sobrenaturais ou lendárias vindas de Feéria, sendo que Fada é atestado, inclusive, como um adjetivo genérico para representar seres heroicos ou lendários.

O próprio J.R.R. Tolkien, em seu ensaio Sobre Estórias de Fadas, cita essa questão da origem da palavra fairy (“fada”) como significando, na verdade, faerie ("feéria").

Fada, como um substantivo mais ou menos equivalente a elfo, é uma palavra relativamente moderna […]. A primeira citação no Oxford Dictionary (a única antes de 1450) é significativa. É tirada do poeta Gower: “as he were a faierie” [como se ele fosse uma fada]. Mas isso Gower não disse. Ele escreveu “as he were of faierie” [como se ele tivesse vindo de Feéria].
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Foi somente séculos mais tarde, como Tolkien também explica no seu ensaio, que a palavra Fada (e Elfo) passou a representar na cultura popular seres diminutos e delicados.

O ser diminuto, elfo ou fada, é (suspeito), na Inglaterra, em grande parte, um produto sofisticado do devaneio literário.2

2Estou falando de transformações que ocorreram antes do aumento do interesse pelo folclore de outros países. As palavras inglesas, tais como elf [elfo], receberam por muito tempo a influência do francês (língua da qual derivam as palavras fay [fata, fada] e Faërie, fairy [Feéria, fada]); mas, em épocas posteriores, por meio de seu uso em traduções, tanto fada quanto elfo adquiriram muito da atmosfera dos contos alemães, escandinavos e celtas [...].
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Sendo assim, Fada, ao menos nos primórdios de seu surgimento, significava nada mais do que uma criatura vinda de Feéria, o Reino Perigoso, sendo atestado, inclusive, que, nos anos 1300, Fada podia significar algo como um cavaleiro lendário ou sobrenatural.

Nesse sentido, quando J.R.R. Tolkien diz que se arrependeu de usar a palavra “Elfo” como tradução de "Quendi" devido às preconcepções da cultura popular, mesmo ela sendo uma palavra “em ancestralidade e significado original suficientemente adequada”, é justamente disso que ele estava falando.

No início, antes de ser influenciada pelos mitos alemães, escandinavos e celtas, a palavra Elfo significava tão somente os seres e cavaleiros lendários vindos de Feéria, não havendo qualquer regra quanto à sua aparência.

Aliás, o próprio Tolkien faz um comentário sobre essa relação do uso de Elfo como significando os cavaleiros lendários do Reino Perigoso.

A Rainha da Terra dos Elfos, que levou para longe Thomas, o Trovador, com seu corcel branco como o leite e mais rápido que o vento, chegou cavalgando à Árvore de Eildon como uma mulher, ainda que de beleza encantadora. Dessa forma, Spenser seguiu a tradição verdadeira quando chamou os cavaleiros de sua Feéria pelo nome de Elfos. Tal nome pertencia antes a cavaleiros, tais como Sir Guyon.
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Eu mencionei mais atrás um trecho no qual Tolkien cita o poeta John Gower quando ele está falando que "Fada", em origem, significava na verdade "Feéria" (isto é, um local em vez de um povo). Naquele trecho em específico, Gower está descrevendo um jovem humano e o descreve de uma forma que ele mesmo conclui ser como se ele tivesse vindo de Feéria, ou seja, como se ele fosse uma Fada.

E o próprio Tolkien fala que, embora essa descrição tenha sido dada para um homem, ela se assemelha muito mais aos habitantes de Feéria do que uma definição popular de “Fada”.

Madeixas mui bem penteadas,
De caras joias coroadas,
Ou samicas de verdes folhas
Como as mais frescas das corbelhas,
Tudo a lhe dar fermoso aspeito;

E assim encarnava ele o jeito
Do falcam fero que olhos lança
E duro ataque à ave mansa,
E como se de Feéria fosse
Amostrava-se à presa doce.

Esse é um jovem de sangue e osso mortais; mas ele corresponde a um retrato muito melhor dos habitantes da Terra dos Elfos do que a definição de uma “fada” com a qual ele é, por um erro duplo, classificado. Pois o problema com a verdadeira gente de Feéria é que eles nem sempre parecem o que são;
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Sim, esse pequeno trecho do poema Confessio Amantis de Gower é o mais próximo que jamais teremos de uma descrição da aparência de um Elfo e uma Fada, sendo que essas palavras representam mais uma essência do que uma característica física propriamente dita.

E, só para resumir esse poema, o jovem descrito por Gower tem (i) cabelos bem penteados, (ii) uma coroa feita com joias preciosas ou com folhas verdes, (iii) um aspecto formoso e (iv) um olhar penetrante. Em outras palavras, uma Fada ou Elfo seria um ser belo e régio (e, é claro, oriundo de Feéria).

Ademais, é válido ressaltar também que J.R.R. Tolkien diz que o significado original de Elfo seria “suficientemente” adequado, então, mesmo que a gente considere essa palavra como significando algo como "um cavaleiro de Feéria", ela ainda não seria 100 % precisa.

De qualquer forma, é esse ser belo, régio e lendário a que Tolkien se referia quando disse que, ao menos na sua origem, a palavra “Elfo” era suficientemente adequada como tradução de Quendi, os primogênitos de seu próprio universo.

Nota-se que em nenhum momento há qualquer menção a um formato diferente para suas orelhas (ou para qualquer outra parte de seu corpo), de modo que os Elfos e as Fadas, ao menos na sua origem, representavam basicamente homens com faculdades estéticas e criativas aprimoradas, maior beleza e nobreza.

Isso, de certa forma, é refletido em uma outra observação que Tolkien faz em seu ensaio Sobre Estórias de Fadas, na qual ele cita que os Elfos descenderiam de Adão, ou seja, os Elfos também seriam, até certa medida, seres humanos.

e, se descendem de nós mesmos, pode-se recordar que um antigo pensador inglês certa vez afirmou que os ylfes, os próprios elfos, descendiam, por meio de Caim, de Adão.
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Até mesmo em seu próprio legendário os Elfos são tidos como seres humanos (isto é, da mesma espécie que os "Homens"), já que, biologicamente falando, somente seres de uma mesma espécie são capazes de reproduzirem um descendente fértil.

Elfos e Homens são evidentemente uma raça, em termos biológicos, ou não poderiam procriar e produzir descendentes férteis — mesmo como um raro evento: há apenas 2 casos em minhas lendas de tais uniões, e fundem-se nos descendentes de Eärendil.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 153)

Em síntese, quando nos aprofundamos no sentido original da palavra Elfo nós acabamos não tendo muitas informações precisas sobre sua aparência, mas apenas descrições genéricas que se limitam a, basicamente, um cavaleiro belo e régio, vindo de Feéria, o Reino Perigoso e Terra das Fadas.

A história das estórias de fadas é provavelmente mais complexa do que a história física da raça humana e tão complexa quanto a história da linguagem humana. Todas as três coisas, invenção independente, herança e difusão, evidentemente tiveram um papel na produção da intrincada teia da Estória. Hoje está além de toda habilidade que não seja a dos elfos destrinchá-la.
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas)

Ao menos com relação a esse primeiro tipo de argumento, de que os Elfos de Tolkien teriam orelhas pontudas pelo fato de os Elfos da cultura popular terem orelhas pontudas, é por isso que nós não podemos levá-lo em consideração como um argumento válido, posto que é baseado em algo que diverge de tudo que Tolkien acreditava e falava.

Resumindo, não dá para dizermos que os Elfos de Tolkien (isto é, os Quendi) tinham orelhas pontudas simplesmente pelo fato dos Elfos da cultura popular terem orelhas pontudas, pois

  1. Tolkien disse que a Terra-média não representava a Europa nórdica nem setentrional (geográfica ou espiritualmente);
  2. quando Tolkien disse que “Elfo” era uma palavra “em ancestralidade e significado original suficientemente adequada” ele (i) deixa claro que não seria 100 % adequada, sendo apenas suficientemente adequada, e (ii) estava se referindo aos seres de Feéria, comumente retratados simplesmente como cavaleiros lendários, belos e régios.

O que Tolkien disse de fato?

As orelhas dos Hobbits

Quanto ao segundo tipo de argumento, que é baseado nos escritos do próprio Tolkien, nós temos, recapitulando, uma carta e um manuscrito linguístico. Comecemos pela carta:

Receio que, caso os senhores necessitem de desenhos de hobbits em várias atitudes, eu deva deixar isso nas mãos de alguém que saiba desenhar.

Visualizo uma figura razoavelmente humana, [...]. Um rosto redondo e jovial; orelhas apenas levemente pontudas e “élficas”;
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 27)

Com relação a essa carta, muitos a usam como um argumento para dizer que os Elfos de Tolkien tinham orelhas pontudas, já que os Hobbits são descritos como tendo orelhas levemente pontudas "e élficas".

Porém, eu particularmente tendo a desconsiderá-la completamente como uma possível prova disso porque ela me parece ambígua e redundante e, assim, inconclusiva.

Relativamente à redundância, nota-se que Tolkien fala “pontudas E élficas”, ou seja, ele dá duas características distintas, onde uma não necessariamente teria relação com a outra. Se Tolkien quisesse dizer “pontudas” quando disse “élficas”, a frase automaticamente se tornaria redundante, já que dizer “pontudas e élficas” seria basicamente o mesmo que dizer “pontudas e pontudas”.

E, como eu já comentei no meu artigo sobre a cor da pele dos Elfos, Tolkien de fato sempre foi muito descritivo com a natureza de seu legendário, em especial em O Senhor dos Anéis, mas ele nunca foi redundante nessas descrições.

De qualquer forma, sem adentrar muito nessa questão da ambiguidade e da possível redundância dessa frase, eu acredito que a discussão sobre a validade dessa carta como prova de que os Quendi tinham orelhas pontudas pode ser simplificada da seguinte forma: quando Tolkien diz que os Hobbits tinham “orelhas élficas”, será que ele estava se referindo aos seus Elfos ou aos Elfos da cultura popular?

Para mim é mais do que evidente que aqui Tolkien está fazendo referência aos Elfos da cultura popular, pois essa carta foi escrita por ele em março de 1938, quando ele estava negociando o lançamento de O Hobbit lá nos Estados Unidos.

Digo isso porque O Hobbit foi o primeiro livro do legendário de Tolkien a ser publicado, lá em 1937, de modo que, quando essa carta foi escrita, o único livro do legendário que o público talvez tivesse conhecimento era O Hobbit.

Isso é importante porque O Hobbit não traz absolutamente nada sobre os Quendi, mencionando genericamente seres feéricos comumente vistos em contos de fadas. Aliás, na primeira edição de O Hobbit Tolkien chegou até mesmo a usar do termo "gnomos" para se referenciar a um dos clãs élficos, o que ele depois "corrigiu", tendo em vista que, como ninguém conhecia seu legendário, o termo estava causando muita confusão com os leitores (falo mais sobre os Gnomos no meu já citado artigo sobre a cor da pele dos Elfos).

Sobre isso, é válido ressaltar que a primeira vez que Tolkien falou publicamente sobre seus seres serem chamados, na verdade, de “Quendi”, e que “Elfos” não era a melhor tradução para essa palavra, foi somente em 1955, lá no Apêndice F de O Senhor dos Anéis. Já a segunda vez que esse assunto se tornou público foi em 1981, com a publicação de As Cartas de J.R.R. Tolkien.

Ou seja, essa carta em questão foi escrita em 1938, 17 anos antes de Tolkien falar pela primeira vez sobre a diferença entre seus Quendi e os Elfos da cultura popular, de modo que me parece mais do que óbvio que, quando ele falou para editores americanos, em 1938, que os Hobbits tinham orelhas “élficas”, Tolkien claramente estava fazendo referência aos Elfos da cultura popular, que é tudo o que aqueles editores teriam conhecimento.

E isso sem nem adentrar no mérito de que, ao menos no início, O Hobbit não fazia parte do grande legendário de Tolkien (apesar de ter referências a ele), tendo essa sido uma alteração que o autor fez anos mais tarde, quando começou a escrever O Senhor dos Anéis. Em outras palavras, ao menos na primeira edição de 1937, não há nada que garanta que os Elfos de O Hobbit eram os Quendi de O Silmarillion ou de O Senhor dos Anéis.

Aliás, nessa frase a palavra “élficas” está escrita entre aspas, o que nos traz uma possível terceira interpretação, dando a entender que Tolkien talvez tenha usado aspas justamente porque, no fundo, ele sabia que aquele termo não era apropriado.

Sendo assim, ficando evidente que nessa carta escrita em 1938 Tolkien estava se referindo aos Elfos da cultura popular e não aos Quendi do seu legendário, já que os editores americanos não fariam a menor ideia disso, a gente retoma o primeiro tópico deste artigo, no sentido de que nós não podemos usar os Elfos e Fadas da cultura popular como base para descrever os Quendi de Tolkien.

A etimologia de “orelha” e “folha”

Superada essa carta, adentremos agora no manuscrito linguístico, no qual Tolkien fala:

As orelhas quendianas eram mais pontudas e com forma de folha do que [?as humanas].
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Aqui sim eu acho que gera uma discussão muito interessante sobre os Elfos de Tolkien – isto é, os Quendi – terem ou não orelhas pontudas. Mas, antes de nos aprofundarmos nessa frase, eu acho válido contextualizar um pouquinho ela.

Nas palavras de Christopher Tolkien, seu pai não simplesmente criava novas línguas, mas também histórias que justificassem a relação e evolução dessas línguas, de modo que, para J.R.R. Tolkien, estudar a língua de um povo era, também, estudar a sua história.

Essa é uma máxima do nosso próprio mundo real, como vemos Tolkien, um filólogo, falando várias vezes em suas cartas, e é por isso que ele naturalmente transpôs isso pro seu legendário.

Cada elemento nas línguas, cada elemento em cada palavra, é em princípio historicamente “explicável” – como o são os elementos em línguas que não são “inventadas” –, e as sucessivas fases da evolução intricada deles eram o deleite de seu criador. Assim, a “invenção” era completamente distinta da “artificialidade”.
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Por esse motivo, Christopher trouxe no quinto volume de A História da Terra-média um manuscrito linguístico escrito por seu pai, por ele mesmo intitulado “Etimologias”, ou “Nomes e palavras beleriândicos e noldorin”, no qual, além de esclarecer a etimologia de muitas palavras élficas, J.R.R. Tolkien também traz alguns esclarecimentos quanto ao seus possíveis surgimentos.

O ano exato de criação desse manuscrito não é sabido ao certo, mas Christopher observa que alguns acréscimos e correções podem ser datados de 1937 e 1938, de modo que a maior parte desse manuscrito foi escrita, então, antes de 1937, ou seja, antes mesmo de O Hobbit ser publicado, e antes de O Senhor dos Anéis sequer começar a ser escrito.

[…] alguns dos acréscimos e correções podem ser datados com segurança ao final de 1937 e ao início de 1938, a época do abandono do QS [Quenta Silmarillion] e do início de O Senhor dos Anéis.
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Christopher também observa que há pouquíssimas palavras e nomes de O Senhor dos Anéis nesse manuscrito, e que as poucas palavras dele que são mencionadas aqui são bem do comecinho de O Senhor dos Anéis, do Livro I (de VI), dando a entender que seu pai de fato não fez quase nenhum acréscimo a esse manuscrito após 1938.

[…] há relativamente poucos nomes que pertencem especificamente a O Senhor dos Anéis; […] a grande maioria é originária da parte inicial de O Senhor dos Anéis – antes do rompimento da sociedade.
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Sendo assim, com exceção de algumas poucas palavras de O Senhor dos Anéis, todas as outras palavras citadas desse manuscrito linguístico foram incluídas, no máximo, até 1938.

Nessa frase na qual Tolkien cita as orelhas quendianas (isto é, dos Quendi, seus "Elfos") como sendo levemente pontudas, ele está explicando a possível relação das palavras “folha” e “orelha”, já que elas tinham ambas um mesmo radical, que era o LAS. As palavras eram diferentes, mas o radical delas era o mesmo.

E aqui Tolkien fala que essa semelhança do radical das palavras “folha” e “orelha” talvez seja porque as orelhas quendianas tinham um formato mais de folha, ou seja, porque elas eram levemente pontudas.

Alguns acreditam que esse radical [LAS, “folha”] é relacionado ao seguinte e a *lassë “orelha”. As orelhas quendianas eram mais pontudas e com forma de folha do que [?as humanas].
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Pode parecer que eu poderia encerrar esse artigo por aqui e simplesmente dizer: “pronto, está aí a prova de que os Elfos de Tolkien também tinham orelhas pontudas”, mas, como você já deve ter adivinhado, a questão não é tão simples assim.

Para esclarecer um pouco melhor o porquê de eu achar que a coisa não é tão simples assim, eu tenho que recapitular dois pontos muito importantes.

O primeiro deles é o de que esse texto etimológico foi escrito por J.R.R. Tolkien em, no máximo, 1938, ou seja, logo quando ele começou a escrever O Senhor dos Anéis (que só foi ser de fato publicado em 1954, 16 anos depois).

E nós não só tivemos 16 anos de criação e evolução da narrativa de O Senhor dos Anéis, como, posteriormente à sua publicação, Tolkien voltou a focar no Quenta Silmarillion, que ele tinha "abandonado" lá atrás quando começou a escrever O Senhor dos Anéis.

J.R.R. Tolkien faleceu em 1973 e o Quenta Silmarillion, que é a maior base para o seu legendário (afinal, o começo de seu legendário foi O Livro dos Contos Perdidos, que se tornou o Quenta Silmarillion), sofreu contínuas readaptações. A título de exemplo, Tolkien, em 1973, apenas um mês antes de falecer, alterou drasticamente a história de Galadriel e Celeborn, transformando ele num Falmar de Alqualondë, e dizendo que tanto ele quanto Galadriel lutaram ferozmente no fratricídio de Alqualondë, tendo eles dois partido em separado para a Terra-média, antes do exílio dos Noldor.

Em outras palavras, o legendário de Tolkien sofreu contínuas readaptações nos 35 anos que se seguiram à escrita desse texto etimológico citado – fato esse que é observado pelo próprio Christopher na abertura do capítulo em questão.

Por outro lado, as histórias linguísticas ainda assim eram “imagens”, inventadas por um inventor, que tinha liberdade de alterar aquelas histórias assim como tinha liberdade de alterar a história do mundo em que ocorriam; e ele assim o fez, copiosamente. […] essa história não é um compilado de fatos históricos a serem descobertos, mas uma visão instável e cambiante do que a história era.
A Estrada Perdida e Outros Escritos (Parte Três: As Etimologias)

Tendo em vista essas contínuas readaptações, eu não posso deixar de observar que, embora Tolkien tenha citado em um manuscrito linguístico, por volta de 1937, que as orelhas quendianas eram levemente pontudas, ele, ao que parece, abandonou esse conceito posteriormente.

O aparente abandono desse conceito, na minha opinião, se justifica por dois pontos que eu acho muito importantes.

O primeiro deles é o de que, mesmo deixando de lado todos os livros de Tolkien que não abordam o legendário da Terra-média, nós ainda temos mais de 20 livros do grande legendário de Tolkien, contendo milhares de páginas e milhões de palavras. E, dessas milhares de páginas e milhões de palavras, nós temos uma única frase fazendo referência às orelhas dos Quendi. Sim, uma única frase dentre mais de 20 livros que abordam todo o legendário criado por J.R.R. Tolkien.

E não só é uma única frase, como ela nem sequer faz parte de qualquer uma das histórias da Terra-média, mas tão somente de um rascunho filológico que o autor nem pretendia que fosse publicado, e que servia apenas para ele mesmo usar como referência na hora de criar nomes e frases élficas para serem incluídas em suas histórias.

Já o segundo ponto meio que complementa o primeiro: além de ao longo dos mais de 20 livros do legendário nós termos uma única frase falando sobre isso, que vem de um rascunho etimológico escrito por volta de 1937, nós também temos diversos elementos nesses mais de 20 livros que dão a entender que os Quendi não tinham orelhas pontudas, o que reforça a ideia de que esse talvez tenha sido um conceito posteriormente abandonado por Tolkien (assim como ele abandonou diversos outros conceitos enquanto seu legendário ia evoluindo ao longo das décadas).

Como comentei, O Senhor dos Anéis foi publicado aproximadamente 17 anos após J.R.R. Tolkien ter escrito essa explicação filológica sobre o porquê de as palavras élficas para orelha e folha terem o mesmo radical, sendo que, não só no Senhor dos Anéis como também em vários outros livros do legendário, nós temos diversas passagens nas quais Elfos e Homens são comparados, nas quais não temos nenhuma menção a qualquer diferença entre suas orelhas.

Muito pelo contrário: essas comparações dão a entender que Elfos e Homens eram, até certo ponto, indistinguíveis na aparência.

A título de exemplo, lá em O Senhor dos Anéis nós temos uma passagem na qual Éomer fica em dúvida se Aragorn era um Elfo, posto que seu nome (Passolargo) não parecia ser humano e porque suas roupas eram élficas, já que Aragorn e o resto da Comitiva haviam todos recebido roupas élficas antes de partirem de Lórien.

“Mas há algo estranho em ti, Passolargo.” Mais uma vez dirigiu os olhos claros e brilhantes para o Caminheiro. “Isso não é nome de Homem que me dás. E é também estranha tua veste. Brotastes da relva? Como escapastes à nossa visão? Sois Gente-élfica?
O Senhor dos Anéis (As Duas Torres; Livro III; 2. Os Cavaleiros de Rohan) - Grifou-se.

Uma outra passagem na qual Elfos e Homens são comparados é do livro O Silmarillion, onde é dito que um homem chamado Túrin podia ser confundido com um Elfo noldorin, ao ponto de que os próprios Elfos o apelidaram de Adanedhel, que significa "Homem-Elfo".

Nos tempos que se seguiram, Túrin cresceu muito nos favores de Orodreth, e quase todos os corações se voltaram para ele em Nargothrond. Pois era jovem e só então alcançara a plenitude da idade viril; e era, em verdade, o filho de Morwen Eledhwen em seu aspecto: de cabelos escuros e pele clara, com olhos cinzentos, e um rosto mais belo do que quaisquer outros entre Homens mortais, nos Dias Antigos. Seu falar e porte eram aqueles do antigo reino de Doriath, e, mesmo em meio aos Elfos, podia ser tomado por um dos das grandes casas dos Noldor; portanto, muitos o chamavam de Adanedhel, o Homem-Elfo.
O Silmarillion (Quenta Silmarillion; 21. De Túrin Turambar) - Grifou-se.

Nota-se nessa passagem que, mais uma vez, não há qualquer menção às orelhas de Túrin, sendo acentuado que ele podia ser confundido com um Elfo noldorin pelos próprios Elfos porque ele tinha cabelos escuros, pele clara, olhos cinzentos, era muito belo, e falava e se portava como um Elfo.

Eu não vou me adentrar muito nisso aqui, mas, só a título de curiosidade, essa referência a cabelos escuros, pele clara e olhos cinzentos é exclusiva dos Elfos noldorin, sobre as quais já comentei lá no meu já citado artigo sobre o tom de pele dos Elfos.

Já a questão da beleza, da fala e do porte seria em referência aos Elfos no geral.

Uma outra passagem em que Elfos e Homens são comparados fisicamente, e nada sobre suas orelhas é sequer mencionado, é lá em Contos Inacabados, mais uma vez sobre Túrin, que, como acabamos de ver, podia ser confundido pelos próprios Elfos como sendo um dos Noldor.

Nessa passagem, Mîm, um Anão-miúdo, disse que pensava que Túrin fosse um Elfo por causa de sua fala e sua voz, ficando surpreso ao perceber que ele era, na verdade, um Homem.

A questão da fala é o fato de que Túrin falava de uma forma mais "bela" (pois ele havia sido criado como filho adotivo de um rei-élfico), sendo que a questão da “voz” é algo que eu ainda vou explicar mais para frente, mas que fazia referência ao fato de que os Elfos tinham uma voz mais bela, mais eloquente e mais nítida de ser ouvida.

Então Mîm abraçou os joelhos de Túrin, dizendo: “Mîm será teu amigo, senhor. Primeiro pensei que fosses um Elfo, pela tua fala e tua voz; mas se és um Homem, tanto melhor. Mîm não ama os Elfos.”
Contos Inacabados (Primeira Parte: A Primeira Era; II. Narn i Hîn Húrin)

Ainda em Contos Inacabados, na versão longa posterior do conto da Queda de Gondolin, um Homem chamado Tuor (primo de Túrin) é levado pelo caminho oculto até o reino de Gondolin, sendo que lá um Elfo diz que a entrada de Homens não era autorizada, e que ele o reconhecia como sendo um Homem especificamente por causa de seus olhos.

Se tivesses trazido para cá, sem autorização, alguém das outras casas dos Noldor, já seria bastante. Mas trouxeste ao conhecimento do Caminho um Homem mortal — pois pelos seus olhos percebo sua gente.
Contos Inacabados (Primeira Parte: A Primeira Era; I. De Tuor e sua Chegada a Gondolin)

Nota-se, mais uma vez, que nada é dito sobre orelhas, mas tão somente que os olhos de Tuor entregaram ele como sendo um Homem mortal.

Uma outra passagem de Contos Inacabados que, de certa forma, compara Homens e Elfos, embora não diretamente, é no capítulo sobre os Istari, que nada mais são do que os Magos que vão para a Terra-média na Terceira Era.

Quando primeiro chegaram na Terra-média, os Homens acreditavam que os Magos eram Homens que apenas teriam adquirido muitos conhecimentos; porém, com o decorrer das gerações eles viram que esses Magos não morriam e, vendo que eles aparentemente eram imortais, começaram a supor que eles fossem Elfos.

Entre os Homens (inicialmente), aqueles que tratavam com eles supunham que eram Homens que haviam adquirido tradições e artes através de estudos longos e secretos. […] e os Homens perceberam que eles não morriam, mas permaneciam iguais (a não ser pelo fato de que envelheciam um pouco no aspecto), enquanto os pais e os filhos dos Homens faleciam. Os Homens, portanto, começaram a temê-los, mesmo quando os amavam, e consideravam que eles fossem da raça dos Elfos […].
Contos Inacabados (Quarta Parte; II. Os Istari)


Acho importante ressaltar que não é dito em momento algum que os Magos mudaram de forma uma vez que chegaram à Terra-média, ou seja, suas orelhas, em tese, sempre continuaram as mesmas, tendo os Homens mudado de opinião quanto à sua raça tão somente porque viram que eles não morriam, de modo que eles não poderiam ser Homens.


Esses são só cinco exemplos nos quais Elfos e Homens são comparados fisicamente ao longo dos livros de Tolkien e, como vimos, em nenhum deles há qualquer menção quanto às suas orelhas.


Na verdade, esses exemplos dão a entender que os Elfos e Homens seriam, até certo ponto, idênticos em suas características físicas, posto que sempre são outros detalhes que acabam entregando a raça de cada um: o olho, a voz, as roupas, e por aí vai.


Claro que há muitas outras comparações entre Elfos e Homens no legendário de Tolkien nessa mesma linha, até porque, como eu comentei, são mais de 20 livros, mas acho que esses cinco exemplos já dão uma noção boa do porquê de eu acreditar que Tolkien mudou de ideia quanto aos Quendi terem orelhas pontudas.


Qual era a diferença entre Elfos e Homens?


Aí você pode me perguntar: “tá, mas se os Elfos não tinham orelhas pontudas, quais eram as diferenças físicas entre eles e os Homens?”


Sobre isso, Tolkien não é muito claro, tanto é que na Carta 144, que eu já citei mais atrás nesse vídeo quando ele fala que os seus Elfos pouco se assemelhavam aos elfos da Europa, ele fala que não iria entrar no mérito do que diferenciava os Elfos dos Homens.


Porém, há várias menções em que ele fala de forma meio genérica das características élficas, com as quais conseguimos criar uma visão geral de como eles mais divergiam fisicamente dos Homens.


[CITAÇÃO]


No princípio, os Filhos Mais Velhos de Ilúvatar eram mais fortes e maiores do que se tornaram desde então; mas não mais belos, pois, embora a beleza dos Quendi nos dias de sua juventude estivesse além de toda outra beleza à qual Ilúvatar deu ser, ela não pereceu, mas vive no Oeste, e pesar e sabedoria a enriqueceram.


O Silmarillion

Quenta Silmarillion; 3. Da Vinda dos Elfos e do Cativeiro de Melkor


Só nessa passagem nós já vamos ter três das maiores características que diferenciam Elfos e Homens: os Elfos eram mais fortes, mais altos e mais belos.


Uma outra passagem, também do Silmarillion, ressalta essa questão da beleza e da altura, e cita também sua grande sabedoria, já que os Elfos eram imortais e, assim, conseguiam acumular mais conhecimento do que os Homens.


[CITAÇÃO]


Naqueles dias, Elfos e Homens eram de estatura e força de corpo semelhantes, mas os Elfos tinham maior sabedoria, e engenho, e beleza; e aqueles que tinham habitado em Valinor e contemplado os Poderes superavam tanto os Elfos Escuros nessas coisas quanto eles, por sua vez, superavam o povo de raça mortal.


O Silmarillion

Quenta Silmarillion; 12. Dos Homens


Essa questão da sabedoria élfica é reiterada quando Tolkien descreve a sabedoria dos Númenóreanos, já que os Númenóreanos, por terem sangue élfico até certo ponto e, assim, viverem por séculos, também desenvolviam sua inteligência mais rapidamente.


[CITAÇÃO]


O desenvolvimento mental númenóreano também se assemelhava em certo grau ao modo eldarin [élfico]. Sua capacidade mental era maior e desenvolvida mais rapidamente do que a de Homens comuns, e era dominante. Após cerca de sete anos, eles cresciam mentalmente com rapidez, e aos 20 anos sabiam e compreendiam muito mais do que um humano normal dessa idade. Uma consequência disso, reforçada por sua expectativa de vigor duradouro que os deixava com pouco senso de urgência na primeira metade de suas vidas, era que eles muito frequentemente ficavam absortos em saberes, e ofícios, e várias atividades intelectuais ou artísticas, em um grau muito maior do que o normal.


A Natureza da Terra-média

Parte Três: O Mundo, suas Terras e seus Habitantes; 11. Vida dos Númenóreanos


Ainda nessa toada de comparar os Númenóreanos com os Elfos, já que, embora fossem Homens, eles tinham sangue élfico, Tolkien cita que os Númenóreanos da linhagem real, ou seja, que descendiam diretamente de Elros, primeiro Rei de Númenor e irmão de Elrond, não tinham barbas, o que seria um resquício desse seu antigo parentesco com os Elfos, posto que os Elfos seriam uma raça imberbe.


Esse resquício do antigo parentesco com os Elfos se reflete também no fato de que os Númenóreanos eram mais altos que os Homens da Terra-média, posto que, como já comentei, os Elfos eram notórios por serem altos.


[CITAÇÃO]


Um relato destas e do fato de que a raça élfica era imberbe, de modo que isso também se tornou uma marca de uma linhagem élfica em certas famílias reais de ascendência númenóreana.


[…] Respondi que eu mesmo imaginava Aragorn, Denethor, Imrahil, Boromir e Faramir como imberbes. Isso, falei, eu supunha que se devesse não a qualquer costume de se fazer a barba, mas a uma característica racial. Nenhum dos Eldar tinha qualquer barba, e essa era uma característica racial de todos os Elfos no meu “mundo”. Qualquer elemento de uma linhagem élfica em ascendências humanas era muito dominante e duradouro […]. As tribos de Homens das quais os Númenóreanos descendiam eram normais e, por isso, a maioria deles teria barbas. Mas a casa real era meio-élfica […]. Os efeitos eram de longa duração: por exemplo, em uma tendência a ter uma estatura um pouco acima da média, a uma maior (embora constantemente decrescente) longevidade, e provavelmente mais duradouros na ausência de barba. Assim, nenhum dos chefes númenóreanos que descendiam de Elros (quer reis ou não) seria barbado.


A Natureza da Terra-média

Parte Dois: Corpo, Mente e Espírito; 5. Barbas


Quanto a essa questão da altura, ela também é ressaltada quando é dito explicitamente que os Elfos eram de uma raça mais alta, tendo eles frequentemente mais de 2 metros de altura.


[CITAÇÃO]


Os Quendi originalmente eram um povo alto. Os Eldar eram […] em geral os membros mais fortes e mais altos da gente élfica naquele tempo. Na tradição eldarin, diz-se que mesmo suas mulheres raramente tinham menos de [1,82 metros] de altura; seus Elfos homens adultos, não menos de [1,98 metros], enquanto alguns dos grandes reis e líderes eram mais altos.


A Natureza da Terra-média

Parte Dois: Corpo, Mente e Espírito; 6. Descrições de Personagens


E, voltando pro Silmarillion, nós temos uma passagem onde é ressaltada essa questão de os Elfos serem mais sábios em razão de sua imortalidade, bem como que eles eram mais resistentes a doenças e outros infortúnios.


[CITAÇÃO]


Imortais eram os Elfos, e sua sabedoria crescia de era a era, e nenhuma doença nem pestilência traziam-lhes a morte. Seus corpos, de fato, eram da matéria da Terra e podiam ser destruídos; e, naqueles dias, eram mais semelhantes aos corpos dos Homens, já que não eram habitados, havia tanto, pelo fogo de seu espírito, que os consome de dentro com o correr do tempo. Mas os Homens eram mais frágeis, mais facilmente mortos por arma ou infortúnio e menos facilmente se curavam; estavam sujeitos a doença e a muitos males; e envelheciam e morriam.


O Silmarillion

Quenta Silmarillion; 12. Dos Homens


Uma outra diferença entre os Elfos e os Homens que é bastante reiterada nos livros é a questão do porte deles, que era, de certa forma, mais régio e pomposo. Isso aparece inclusive naquele trecho que eu já li mais atrás, onde é dito que uma das características que faziam com que Túrin se assemelhasse aos Elfos noldorin era ele ter sido criado tanto em um reino élfico quanto por um rei-élfico, de modo que ele tinha um porte e uma fala mais régio e pomposos.


[CITAÇÃO]


Seu falar e porte eram aqueles do antigo reino de Doriath, e, mesmo em meio aos Elfos, podia ser tomado por um dos das grandes casas dos Noldor; portanto, muitos o chamavam de Adanedhel, o Homem-Elfo.


O Silmarillion

Quenta Silmarillion; 21. De Túrin Turambar


Essa questão do porte élfico é citada também lá em Contos Inacabados, quando é dito que, sob a visão dos Homens da Terra-média, os Númenóreanos se assemelhavam muito aos Elfos devido principalmente ao seu porte e às suas vestes.


[CITAÇÃO]


No entanto, quando contemplaram os Homens dos navios, o temor os abandonou, embora por algum tempo se quedassem mudos de admiração; pois, por muito que eles próprios fossem considerados poderosos entre sua gente, os Homens dos navios se pareciam mais com senhores élficos do que com Homens mortais, no porte e nas vestes.


Contos Inacabados

Segunda Parte: A Segunda Era; II. Aldarion e Erendis; A Esposa do Marinheiro


Só lembrando que essa questão de os Elfos serem seres belos, com um porte mais régio, é dito pelo Tolkien também naquela citação que eu li mais atrás, quando ele fala que seus Elfos não tinham quase nada a ver com os Elfos e Fadas da Europa.

e se fosse pressionado a racionalizar, eu diria que eles representam realmente Homens com faculdades estéticas e criativas aprimoradas em grande medida, maior beleza e vida mais longa, e nobreza […].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 144) - Grifou-se.

E uma outra característica que eu também já comentei é a questão da voz dos Elfos, que, por ser mais agradável e ressoante, podia ser ouvida com maior clareza e de uma distância maior.

Sua fala e sua clara voz ressoante não deixaram dúvida nos corações deles: o cavaleiro pertencia ao povo dos Elfos. Ninguém mais que morasse no vasto mundo tinha vozes tão belas de se ouvir.
O Senhor dos Anéis (A Sociedade do Anel; Livro I; 12. Fuga para o Vau) - Grifou-se.

Da síntese e conclusão

Diante disso tudo, podemos concluir que as principais características físicas dos Elfos, que os diferenciavam dos Homens, eram eles serem

  1. mais fortes;
  2. mais altos;
  3. mais belos;
  4. mais resistentes a doenças (o que refletia na beleza);
  5. mais sábios (por serem imortais e acumularem mais conhecimento);
  6. tinham um porte mais régio;
  7. tinham uma voz mais agradável e ressoante;
  8. falavam de uma forma mais pomposa; e
  9. não tinham barba.

Isso, é claro, sem adentrar no mérito de outras características, por assim dizer, "não observáveis", como, por exemplo, o fato de que os Elfos enxergavam mais longe, o fato de que os Elfos podiam se comunicar pelo pensamento, e por aí vai, nem em outras questões que sejam óbvias, como por exemplo o tipo de vestimenta dos Elfos e a língua que eles usavam (como naquele trecho no qual Éomer pensa que Aragorn era um Elfo por causa de seu nome e de sua roupa).

E, só para finalizar, acredito que boa parte dessas características podem ser observadas no próprio Legolas, conforme o compilado de suas descrições que é trazida lá em A Natureza da Terra-média.

O Legolas da história era um príncipe élfico da raça sindarin (RR, p. 363), trajado do verde e do marrom dos Elfos Silvestres, a quem seu pai governava (SA, p. 253): alto como uma jovem árvore (DT, p. 28), ágil, imensamente forte, capaz de envergar ligeiro um grande arco de guerra e abater um Nazgûl, dotado com a ainda tremenda vitalidade dos corpos élficos, tão robusto e resistente a ferimentos que andava somente com sapatos leves por sobre rochas ou através da neve (SA, p. 306), o mais incansável de todos da Sociedade.
A Natureza da Terra-média (Parte Dois: Corpo, Mente e Espírito; 6. Descrições de Personagens)

E, recapitulando o que nós vimos no começo desse artigo, é por isso que J.R.R. Tolkien disse que se arrependeu de ter se utilizado da palavra “Elfos” como tradução de “Quendi”, posto que os Quendi não tinham nenhuma relação com os Elfos e Fadas da cultura popular da Europa, embora, como ele mesmo disse, a palavra “Elfo”, na sua origem, era suficientemente adequada, já que ela fazia referência tão somente a cavaleiros lendários, que eram belos e régios, sendo que ele usa o termo “suficientemente" justamente porque seus Quendi tinham algumas peculiaridades, como essa questão de terem uma visão mais aguçada, serem mais resistentes a doenças, terem uma voz mais ressoante, e por aí vai.

E é por isso que, depois de tudo isso, eu particularmente acredito que os Elfos de Tolkien, ou melhor, os Quendi, não tinham orelhas pontudas, embora Tolkien tivesse cogitado isso na fase inicial do seu legendário, sendo que essa é, provavelmente, um dos vários conceitos que ele foi abandonando ao longo das décadas.