Elfos Negros na Terra-média

De Compendium Tolkien
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Este artigo é sobre Elfos de pele negra. Para os Elfos Escuros, veja Moriquendi.
  • Escrito por Projeto Tolkien em 2022 (atualizado por último em 14/03/2024).

Em resposta a tudo que tem sido falado desde a divulgação das primeiras imagens da nova série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, eu resolvi fazer um vídeo analisando a fundo o que J.R.R. Tolkien de fato já havia falado sobre a aparência dos Elfos de seu universo, em especial o seu tom de pele, sob o ponto de vista tanto de livros "canônicos" quanto de livros "não-canônicos" (i.e., aqueles livros que não foram finalizados em vida e acabaram sendo publicados postumamente com edições e comentários de outras pessoas).

O vídeo em questão foi publicado em 07/03/2022 (você pode assisti-lo clicando aqui), mas, depois de ver os incontáveis comentários que apareceram nele, eu achei que o vídeo acabou ficando um pouco desfocado, pois adentrei em questões que não tinham qualquer relação com o tom de pele dos Elfos (como barba, cabelos, olhos, etc.), bem como adentrei no dilema sobre o que é e o que não é "canônico" no legendário da Terra-média, que influencia essas outras questões, mas não o tom de pele em si, o que acabou deixando certos pontos ambíguos e confusos.

Por esse motivo, eu resolvi fazer um novo levantamento, mais detalhado, para sintetizar melhor essa discussão, centralizando ele exclusivamente no tom de pele dos Elfos.

Aviso 1: Todas as citações mencionadas foram retiradas das edições da HarperCollins Brasil.

Aviso 2: Uma versão bem semelhante, mas anterior, desse levantamento foi publicada em formato de vídeo no canal do Projeto Tolkien em 02/04/2023 (você pode assisti-lo clicando aqui).

Introdução

Antes de adentrarmos no levantamento em si é importante ressaltar um ponto muito importante: o autor J.R.R. Tolkien nunca disse que todos os Elfos de seu universo eram brancos ou que Elfos pretos não existiam.

Tendo isso em mente, você pode se perguntar: "se Tolkien nunca falou isso, então por que estamos tendo essa discussão?" E, tentando simplificar uma resposta que certamente poderia se estender muito, eu diria: "por causa da preconcepção popular, muitas vezes fundamentada, ainda que inconscientemente, em argumentos racistas e/ou eurocêntricos."

Quando o Amazon Studios divulgou a primeira imagem de Arondir, um Elfo original da nova série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, que seria interpretado por Ismael Cruz Córdova, um ator preto, começaram a chover comentários internet afora alegando que a empresa estaria "deturpando" as obras de J.R.R. Tolkien em prol de uma cultura "woke", colocando atores negros para interpretar personagens que eram brancos nos livros. Comentários esses que eram sempre baseados ou em puro racismo ou em um total desconhecimento das obras originais.

Acontece que simplesmente dizer para essas pessoas algo como "não há qualquer menção nos livros de Tolkien de que os Elfos eram todos brancos" não era suficiente. Mesmo dizendo que não havia qualquer menção neste sentido, estas pessoas insistiam em forçar uma interpretação deturpada dos livros (ou das intenções do autor) para justificarem que Elfos pretos realmente não existiam.

Sendo assim, esse é o motivo deste levantamento ter sido criado. Já que simplesmente dizer que Tolkien nunca havia falado nada neste sentido não foi o suficiente, e decidi tentar refutar, um a um, todos os argumentos que eu encontrei internet afora que (supostamente) comprovariam que Elfos negros não existiam no legendário da Terra-média.

Apenas a título de esclarecimento, este artigo não abordará a importância da representatividade no entretenimento porque 1) as pessoas que reclamam da presença de um personagem negro em uma adaptação cinematográfica evidentemente não se importam com isso, de modo que abordar esse assunto seria inútil, 2) eu não tenho propriedade para falar sobre o assunto, e 3) essa discussão não é necessária para comprovar que Elfos negros podiam sim ter existido na Terra-média.

Abaixo, os "argumentos" que eu mais encontrei e, em seguida, a minha explicação do porquê de eu acreditar que esse argumento não faz sentido. Tudo, é claro, fundamentado nos próprios livros.

Rebatendo argumentos

“Em O Senhor dos Anéis Tolkien deixou claro que os Elfos de seu universo ‘eram belos, de pele clara e de olhos cinzentos’.”

Não é bem assim. De fato há essa menção em O Senhor dos Anéis, mas trata-se de uma frase tirada de contexto, conforme já extensivamente explicado por Christopher Tolkien (filho de J.R.R. Tolkien e seu "executor literário") em O Livro dos Contos Perdidos 1, o 1.º volume da coleção A História da Terra-média.

Em O Senhor dos Anéis, nós temos o seguinte trecho:

Elfos foi usado para traduzir tanto Quendi, “os falantes”, o nome alto-élfico de toda a sua espécie, e Eldar, o nome dos Três Clãs que buscaram o Reino Imortal e ali chegaram no começo dos Dias (exceto apenas pelos Sindar). [...] Eram altos, de pele clara e olhos cinzentos, apesar de terem as madeixas escuras, exceto na casa dourada de Finarfin;11
O Senhor dos Anéis (Apêndice F; II. Da Tradução)

Já em O Livro dos Contos Perdidos 1, Christopher nos traz a versão completa do rascunho de seu pai para esta passagem do Apêndice F de O Senhor dos Anéis:

Em um rascunho do parágrafo final do Apêndice F de O Senhor dos Anéis, ele [Tolkien] escreveu:

Às vezes (não neste livro) tenho usado “Gnomos” por Noldor e “gnômico” por noldorin. Fiz isso porque [...], para alguns, “Gnomo” ainda sugerirá conhecimento. Ora, o nome alto-élfico desse povo, Noldor, significa Aqueles que Sabem; pois dentre os três clãs dos Eldar, desde seu começo, os Noldor sempre se distinguiram, tanto por seu conhecimento das coisas que são e foram neste mundo, quanto por seu desejo de conhecer mais. Porém, não se assemelhavam de nenhum modo aos Gnomos da teoria erudita, nem da imaginação popular; e agora abandonei essa representação por demasiado enganosa. Pois os Noldor pertenciam a uma raça elevada e bela, os Filhos mais velhos do mundo, que agora se foram. Eram altos, de pele clara e olhos cinzentos, e suas madeixas eram escuras, exceto na casa dourada de Finrod […].

No último parágrafo do Apêndice F, conforme publicado, a referência aos “Gnomos” foi removida, e substituída por um trecho explicando o uso da palavra Elves [Elfos] como tradução de Quendi e Eldar. […] Portanto, essas palavras que descrevem características do rosto e dos cabelos foram escritas, na verdade, apenas sobre os Noldor, e não sobre todos os Eldar: de fato os Vanyar tinham cabelos dourados, e foi da mãe vanyarin de Finarfin, Indis, que ele e seus filhos Finrod Felagund e Galadriel herdaram os cabelos dourados que os distinguiam entre os príncipes dos Noldor. Mas sou incapaz de determinar como essa extraordinária corrupção do sentido surgiu.*

* O nome Finrod no trecho ao final do Apêndice F está incorreto: Finarfin era Finrod e Finrod era Inglor até a segunda edição de O Senhor dos Anéis, e, na ocasião, a alteração não foi feita.
O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido) - Grifou-se.

Como mencionado por Christopher, essa deturpação do sentido, oriunda da omissão de parte do texto de seu pai, foi corrigida na segunda edição de O Senhor dos Anéis, a partir da qual essa frase conta com uma nota de rodapé na qual é ressaltado tratar-se de uma descrição exclusiva para os Noldor (um dos três clãs élficos)[Nota 1], e não para os Elfos como um todo.

11 Estas palavras que descrevem caracteres de rosto e cabelos aplicavam-se, de fato, apenas aos Noldor. [N. E.]
O Senhor dos Anéis (Apêndice F; II. Da Tradução)

Nesse sentido, considerando que a segunda edição de O Senhor dos Anéis foi publicada ainda em 1966, alguém querer se utilizar desse trecho para justificar que todos os Elfos do legendário da Terra-média seriam brancos me parece, no mínimo, ingênuo ou mal-intencionado.

Ademais, é válido ressaltar aqui que, nas poucas vezes que J.R.R. Tolkien cita um Elfo como tendo pele clara, ele o faz com um Noldo (singular de Noldor), e, nas poucas vezes que outros personagens são descritos como brancos e comparados com os Elfos, eles são comparados especificamente com os Elfos do clã noldorin.

A título de exemplo, Túrin, filho de Húrin, é comparado nos livros, mais de uma vez, com os Elfos, sendo ele descrito como um Homem branco, sendo que, no entanto, essa comparação é feita especificamente com os Noldor:

Nos tempos que se seguiram, Túrin cresceu muito nos favores de Orodreth, e quase todos os corações se voltaram para ele em Nargothrond. Pois era jovem e só então alcançara a plenitude da idade viril; e era, em verdade, o filho de Morwen Eledhwen em seu aspecto: de cabelos escuros e pele clara, com olhos cinzentos, e um rosto mais belo do que quaisquer outros entre Homens mortais, nos Dias Antigos. Seu falar e porte eram aqueles do antigo reino de Doriath, e, mesmo em meio aos Elfos, podia ser tomado por um dos das grandes casas dos Noldor; portanto, muitos o chamavam de Adanedhel, o Homem-Elfo.
O Silmarillion (Quenta Silmarillion; 21. De Túrin Turambar) - Grifou-se.

Nota-se que Túrin tinha (i) cabelos escuros, (ii) pele clara e (iii) olhos cinzentos, que eram exatamente as três características físicas que Tolkien descreveu os Noldor como possuindo no já citado Apêndice F de O Senhor dos Anéis.

Um outro exemplo seria o Elfo Maeglin, filho de Aredhel, que também é descrito como possuindo pele branca, sendo ele estritamente comparado aos Noldor (apesar de ter sangue noldorin por parte de mãe, Maeglin era considerado um Sinda, isto é, um Elfo-cinzento):

Quando Maeglin chegou à sua estatura plena, assemelhava-se em rosto e forma antes à sua parentela dos Noldor, mas em ânimo e mente era o filho de seu pai. [...] Era alto e de cabelos negros; seus olhos eram escuros, porém, luzentes e agudos como os olhos dos Noldor, e sua pele era branca.
O Silmarillion (Quenta Silmarillion; 16. De Maeglin)

(Falarei mais sobre Maeglin mais para frente, pois há outras questões a serem abordadas sobre ele.)

Todos os (poucos) Elfos que são descritos nos livros como tendo pele clara tinham, no todo ou em parte, sangue noldorin, e todos personagens que são descritos como brancos e que são comparados aos Elfos, são comparados justamente com os Noldor.

Em outras palavras, esta passagem do Apêndice F de O Senhor dos Anéis (quando contextualizada com a passagem de O Livro dos Contos Perdidos) evidencia que não só não há qualquer indicativo de que todos os Elfos fossem brancos, como os vários comparativos de personagens brancos com Elfos noldorin apenas reforça a ideia de que somente os Noldor tinha essa distinção na aparência em seus membros.

“A Terra-média representa a Europa nórdica e, por isso, não havia personagens negros.”

Um outro argumento que eu constantemente vejo por aí é o de que a Terra-média representaria a Europa “nórdica” e que, por isso, não teria como haver personagens negros.

Em primeiro lugar, estudos evidenciam que havia sim pessoas pretas na Europa setentrional, por diferentes razões, mas eu não vou adentrar nessa questão pelo mesmo motivo pelo qual não adentrarei na questão da importância da representatividade: 1) as pessoas que reclamam da presença de um personagem negro em uma adaptação cinematográfica não se importam com isso, posto que possuem uma visão já há muito tempo arraigada sobre a Europa, e 2) essa discussão não é necessária para comprovar que Elfos pretos podiam sim ter existido na Terra-média.

Em segundo lugar, se você realmente se considera um fã de J.R.R. Tolkien e suas obras, pare de se utilizar da palavra “nórdica” para se referenciar ao norte (ou noroeste) da Europa, pois o autor deixou claro diversas vezes que possuía total aversão a essa palavra, posto que, segundo o próprio Tolkien, ela estava associada a doutrinas racistas.

Em breve síntese, Tolkien odiava o termo “nordic” ("nórdico") e, para ele, nós deveríamos nos utilizar do termo “northern” (“setentrional”) para nos referenciarmos ao norte/noroeste da Europa. Quanto a especificamente o idioma nórdico, o termo original em inglês é "Norse", sendo que uma dubiedade pode surgir para nós brasileiros pelo fato de que tanto "nordic" quanto "Norse" são traduzidos por aqui como "nórdico". Assim, em respeito a J.R.R. Tolkien, sugiro o uso do termo "setentrional" para se referenciar à região em si e "idioma nórdico" (em vez de apenas "nórdico") para se referenciar ao idioma.

Alguns exemplos nos quais Tolkien fala sobre essa sua aversão pela palavra “nordic” vêm das Cartas n.º 29 e 45 do livro As Cartas de J.R.R. Tolkien, nas quais ele critica o nazismo por se apropriar, perverter e arruinar a essência “setentrional” em favor de doutrinas raciais não-científicas.

[A Allen & Unwin negociara a publicação de uma tradução alemã de O Hobbit com a Rütten & Loening de Potsdam. Essa firma escreveu a Tolkien perguntando se ele era de origem “arisch” (ariana).]

Devo dizer que a carta em anexo da Rütten e Loening é um tanto rígida. Sofro essa impertinência por possuir um nome alemão ou as leis lunáticas deles exigem um certificado de origem “arisch” de todas as pessoas de todos os países?

Pessoalmente, eu estaria inclinado a recusar o fornecimento de qualquer Bestätigung1 (embora por acaso eu possa fazê-lo) e deixar que uma tradução alemã fosse suspensa. Seja como for, devo opor-me fortemente à aparição impressa de qualquer declaração semelhante. Não considero a (provável) ausência total de sangue judeu como necessariamente meritória; tenho muitos amigos judeus, e lamentaria asseverar a noção de que aprovo a totalmente perniciosa e não científica doutrina racial.

1 Alemão, "confirmação".
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 29) - Grifou-se.

Passei a maior parte da minha vida, desde que eu tinha sua idade, estudando assuntos germânicos (no sentido geral que inclui a Inglaterra e a Escandinávia). [...] Você tem de compreender o bem nas coisas para detectar o verdadeiro mal. [...] suponho que sei melhor do que a maioria das pessoas qual é a verdade sobre esse absurdo “nórdico”. De qualquer modo, tenho nesta Guerra um ardente ressentimento particular [...] contra aquele maldito tampinha ignorante chamado Adolf Hitler [...] que está arruinando, pervertendo, fazendo mau uso e tornando para sempre amaldiçoado aquele nobre espírito setentrional, uma contribuição suprema para a Europa, que eu sempre amei e tentei apresentar sob sua verdadeira luz.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 45) - Grifou-se.

Em terceiro lugar, muito embora seja comum ouvirmos a história de que o plano de J.R.R. Tolkien era o de criar uma mitologia para a Inglaterra, de modo que seu legendário se passaria em uma Europa setentrional, a questão não é tão simples quanto parece.

Isso só era verdade para O Livro dos Contos Perdidos, escrito por Tolkien entre os anos 1917 e 1920, que é a primeira versão do que muito mais tarde viria a ser O Silmarillion como o conhecemos. Em outras palavras, essa ideia não se aplicava para O Senhor dos Anéis (finalizado em 1954) nem para O Silmarillion tardio (não finalizado em vida).

Em O Livro dos Contos Perdidos (1917-20), a relação com a Inglaterra era clara e direta, mas, ao longo dos anos, conforme seu legendário foi evoluindo, essa relação foi deixada totalmente de lado pelo autor, tendo Tolkien deixado claro ainda em vida, 50 anos depois de escrever os Contos Perdidos, que isso não era mais aplicável à sua mitologia.

É claro que parte de suas inspirações são derivadas de mitos europeus, mas, em uma carta escrita por J.R.R. Tolkien em 08/02/1967, apenas seis anos antes de falecer, na qual ele traz alguns comentários pontuais sobre uma entrevista feita com Charlotte e Denis Plimmer, ele deixa claro que a Terra-média não representava a Europa nórdica (nem setentrional), seja geograficamente ou "espiritualmente", e que essa não era a sua intenção.

[O texto abaixo é de trechos do comentário de Tolkien, enviado a Charlotte e Denis Plimmer, sobre o rascunho da entrevista destes com ele. As passagens em itálico são citações do rascunho deles.]

A Terra-média .... corresponde espiritualmente à Europa Nórdica.

Nórdica não, por favor! Uma palavra pela qual pessoalmente tenho aversão; está associada, apesar de ser de origem francesa, com teorias racistas. Geograficamente, setentrional em geral é melhor. Mas uma análise mostrará que mesmo essa palavra é inaplicável (geográfica ou espiritualmente) à “Terra-média”. Esta é uma palavra antiga, não inventada por mim, como a consulta a um dicionário como o Shorter Oxford mostrará. Significava as terras habitáveis de nosso mundo, situadas no meio do Oceano circundante. [...]

Auden declarou que para mim “o Norte é uma direção sagrada”. Isso não é verdade. O noroeste da Europa, onde tenho vivido (e a maioria de meus ancestrais viveu), tem minha afeição, como deve ter o lar de um homem. Amo sua atmosfera e sei mais de suas histórias e idiomas do que sei de outras partes; mas não é “sagrado”, nem exaure minhas afeições. Por exemplo, tenho um amor em particular pela língua latina e, entre seus descendentes, pelo espanhol. Uma simples leitura das sinopses deveria deixar claro que isso não é verdadeiro para minha história. O Norte era a sede das fortalezas do Diabo. O progresso da história termina no que é muito mais parecido com o restabelecimento de um Sacro Império Romano efetivo com sua sede em Roma do que qualquer coisa que seria planejada por um “nórdico”.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 294) - Grifou-se.

E, ainda que a Terra-média representasse a "Europa nórdica" como muitos alegam (o que, ressalto, ela não representava), dizer que isso significaria que não existem personagem negros nem sequer faz sentido lógico, pois há diversos personagens humanos que Tolkien descreve como sendo negros (como alguns dos Haradrim). Até mesmo Tom Bombadil é descrito como tendo uma pele "marrom" (que não é negra, mas definitivamente também não é "branca").

Por que essa seletividade? Uma mitologia (supostamente) "europeia" não pode ter Elfos negros, mas pode ter Homens negros? Qual é a lógica disso?

“A etimologia de ‘Elfo’ infere a ideia de ‘branco’.”

Muito também se tem falado de que a palavra “Elfo” (no original, Elf) tem origem nos antigos mitos e folclores germânicos e nórdicos e que ela estava intimamente associada à ideia de branco, sendo que o radical nórdico de Elf, no caso alv, seria o mesmo radical de palavras como “alpes” ou “albino”.

Em primeiro lugar, a etimologia de Elf não é tão simples assim.

Segundo o Online Etymology Dictionary, é sugerido que Elf tenha origem no *albiz proto-germânico, que também teria dado origem a palavras posteriores como o alp alemão (de onde vem, por exemplo, alpes e albino), mas é importante lembrar o que significa esse * no início de albiz: essa palavra nunca foi encontrada em qualquer registro escrito e é uma invenção posterior para tentar justificar a relação entre palavras distintas mas semelhantes. Ou seja, não sabemos de fato se Elf e alpes/albino realmente têm um antepassado em comum, pois nunca foi encontrado nenhum registro fático nesse sentido.

Além disso, ainda que Elf e alpes/albino realmente tivessem uma mesma origem etimológica (do que, ressalto, não temos prova), isso não implica dizer que a palavra Elf em si tenha ligação com a cor branca, posto que "Elf" precederia ao "alp" alemão.

Esse*albiz proto-germânico teria originado o ylfe (saxão ocidental), ælf (nortúmbrio) e elf (merciano, kentico) do inglês antigo que significavam algo como sprite, fairy, goblin e incubus, sendo que todas essas palavras, nos anos 1550, eram usadas figurativamente para representar uma "pessoa malvada".

Não temos uma palavra portuguesa que tenha derivado diretamente de sprite, mas ela pode ser traduzida basicamente como “espírito”, já que a própria etimologia de “sprite” sugere que ela tenha vindo do latim “spiritus” que, obviamente, também deu origem à palavra “espírito”. Já goblin significava basicamente “um demônio, um íncubo, uma fada feia e malvada ou um espírito”, e aqui a gente já começa a ver muita repetição nas definições dessas palavras. Incubus, por sua vez, significava basicamente “um demônio ou ser imaginário que causava pesadelos”. Quanto a fairy, ela nada mais é do que “fada”, palavra essa que mais se repete na etimologia de todas as outras.

Sendo assim, a gente vê que, ao menos originalmente, antes da difusão na cultura popular, Elfo, Fada, Espírito, Gobelim e Íncubo significavam mais ou menos a mesma coisa, sendo que o termo “fairy” (“fada”) é o que mais se repete na etimologia de todas essas palavras. Aliás, o próprio Tolkien diversas vezes usa Elfo e Fada indiscriminadamente, dizendo que eles eram termos mais ou menos equivalentes.

De acordo com o Century Dictionary, Elfo e Fada eram basicamente os mesmos seres, sendo apenas que Elfo era geralmente mais jovem e malvado do que uma Fada.

Quanto à etimologia de Fada em si, a palavra original era, na verdade, “faerie”, que vem do francês antigo e é traduzida aqui no Brasil como Feéria, sendo que Faerie ("Feéria") era o nome dado especificamente ao reino em que viviam criaturas sobrenaturais ou lendárias. Em outras palavras, Feéria pode ser traduzido como Terra das Fadas.

Com o decorrer do tempo, “Fairy” (não Faerie), traduzida aqui no Brasil como “Fada”, passou a ser utilizado, via de consequência, como o nome dessas criaturas sobrenaturais ou lendárias vindas de Feéria, sendo que Fada é atestado, inclusive, como um adjetivo genérico para representar seres heroicos ou lendários.

O próprio Tolkien, em seu ensaio Sobre Estórias de Fadas, cita essa questão da origem da palavra Fada ("Fairy") como significando, na verdade, o reino de Feéria ("Faerie"):

Fada, como um substantivo mais ou menos equivalente a elfo, é uma palavra relativamente moderna […]. A primeira citação no Oxford Dictionary (a única antes de 1450) é significativa. É tirada do poeta Gower: “as he were a faierie” [como se ele fosse uma fada]. Mas isso Gower não disse. Ele escreveu “as he were of faierie” [como se ele tivesse vindo de Feéria].
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Em seu ensaio "Sobre Estórias de Fadas", presente no livro Árvore e Folha, o próprio Tolkien ressalta que a palavra Elf precede os antigos mitos e folclores germânicos e setentrionais.

O ser diminuto, elfo ou fada, é (suspeito), na Inglaterra, em grande parte, um produto sofisticado do devaneio literário.2

2Estou falando de transformações que ocorreram antes do aumento do interesse pelo folclore de outros países. As palavras inglesas, tais como elf [elfo], receberam por muito tempo a influência do francês (língua da qual derivam as palavras fay [fata, fada] e Faërie, fairy [Feéria, fada]); mas, em épocas posteriores, por meio de seu uso em traduções, tanto fada quanto elfo adquiriram muito da atmosfera dos contos alemães, escandinavos e celtas [...].
Árvore e Folha (Sobre Estórias de Fadas) - Grifou-se.

Nesse sentido, não há como se ter certeza sobre qual o significado original de palavra Elf, sendo que o próprio J.R.R. Tolkien aborda em seu ensaio as confusas possíveis origens deste termo, jamais tentando dar-lhe um significado original (apenas a relacionando à palavra Fada) e jamais fazendo qualquer menção à ideia de branco, atentando-se mais para o que define a estórias de fadas e elfos do que para o que define os elfos em si.

Em segundo lugar, ainda que houvesse provas de que Elf estava intimamente associado à ideia de branco (o que, ressalto, não há), isso, por si só, não significaria que todos os Elfos do legendário da Terra-média eram brancos.

Isto porque nós não podemos nos esquecer de que, tecnicamente falando, é equivocado chamar essas criaturas criadas por Tolkien de "Elfos", posto que elas chamavam-se, na verdade, "Quendi", que são uma invenção original do autor.

Além de Tolkien reconhecer que, embora isso fosse verdade no início, seu legendário tinha deixado de ter uma relação direta com a Inglaterra e, via de consequência, com a Europa setentrional (como vimos no tópico anterior), ele também deixou claro diversas vezes que “Elfo” foi uma palavra pré-existente que ele optou por se utilizar como tradução de Quendi, e que essas duas palavras – Quendi e Elfos – não eram equivalentes.

(Só para esclarecer para quem porventura não saiba, Quendi significa “Os Falantes”, e é a palavra "élfica" para se referenciar aos Elfos. )

Tolkien fala sobre essa questão de “Elfos” ser uma tradução não muito precisa de “Quendi”, por exemplo, lá nos Apêndices de O Senhor dos Anéis.

Elfos foi usado para traduzir tanto Quendi, “os falantes”, o nome alto-élfico de toda a sua espécie, e Eldar, o nome dos Três Clãs que buscaram o Reino Imortal […]. De fato, essa palavra antiga era a única disponível […]. Mas ela minguou, e a muitos pode agora sugerir fantasias delicadas ou tolas, tão diferentes dos Quendi de outrora […].
O Senhor dos Anéis (Apêndice F; II. Da Tradução) - Grifou-se.

Isso também fica explícito em várias cartas escritas por Tolkien, nas quais ele diz, por exemplo:

E, de qualquer forma, elfo, gnomo, gobelim e anão são apenas traduções aproximadas dos nomes em Élfico Antigo para seres de raças e funções não exatamente iguais.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 25) - Grifou-se

O que você pede é O Silmarillion, que é na prática uma história dos Eldalië (ou Elfos, por uma tradução não muito precisa), de sua ascensão até a Última Aliança e a primeira derrubada temporária de Sauron [...].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 114) - Grifou-se

Por trás de minhas histórias há agora um nexo de idiomas (a maioria apenas estruturalmente esboçada). Mas àquelas criaturas que em inglês chamo enganosamente de Elfos são designados dois idiomas relacionados bastante completos.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 131) - Grifou-se

Tenho dificuldade em encontrar nomes ingleses para criaturas mitológicas com outros nomes, uma vez que as pessoas não “aceitariam” uma série de nomes Élficos [como “Quendi” ou “Eldar” para os Elfos, por exemplo], e prefiro que elas aceitem minhas criaturas lendárias mesmo com as falsas associações da “tradução” do que não as aceitem de modo algum.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 156) - Grifou-se

Aliás, sendo ainda mais específico sobre isso, há uma carta na qual Tolkien fala expressamente que seus “Elfos” (isto é, seus “Quendi”) não guardavam nenhuma relação com os Elfos da Europa.

“Elfos” é uma tradução, talvez agora não muito adequada, mas originalmente boa o suficiente, de Quendi. Eles são representados como uma raça similar em aparência (e ainda mais no passado distante) aos Homens e, em dias antigos, da mesma estatura. […] Mas suponho que os Quendi nestas histórias sejam de fato muito pouco relacionados aos Elfos e Fadas da Europa; e se eu fosse pressionado a racionalizar, eu diria que eles representam realmente Homens com faculdades estéticas e criativas aprimoradas em grande medida, maior beleza e vida mais longa, e nobreza […].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 144) - Grifou-se

Dito isto, é importante ressaltar que, além de Tolkien ter deixado claro diversas vezes que suas criaturas não eram "Elfos" propriamente ditos, tendo usado este termo apenas como uma tradução de Quendi e Eldar, o autor também disse explicitamente em várias cartas que se arrependeu de ter se utilizado dessa palavra (“Elfo”) por acreditar que ela estava cheia de vícios que eram demais para se superar.

Além disso, agora lamento profundamente ter usado Elfos, embora esta seja uma palavra em ancestralidade e significado original suficientemente adequada. A desastrosa depreciação dessa palavra […] realmente a sobrecarregou com tons lamentáveis, que são muitos para se superar. […] Minha dificuldade é de que, uma vez que tentei apresentar uma espécie de legendário e história de uma “época esquecida”, todos os termos específicos estavam em uma língua estrangeira, e não existem equivalentes precisos em inglês.
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 151) - Grifou-se

Não podemos nos esquecer de que Tolkien era um filólogo e tinha um vasto conhecimento do vocabulário e da etimologia de diversas línguas, não ficando preso ao convencionado popularmente na sua época.

Justamente por esse motivo, Tolkien deixou claro diversas vezes que se arrependeu muito de ter se utilizado não só da palavra Elfo, como também de palavras como Gnomo, Gobelim e até Anão – todas pelo mesmo motivo de que essas palavras estavam viciadas com outros significados na cultura popular e não guardavam uma relação precisa com as criaturas de seu legendário.

Só pra explicar pra quem porventura não conheça, Gnomos era como Tolkien chamava os Noldor, um dos Três Clãs dos Elfos, lá nas primeiras versões de seu legendário, vide o já citado O Livro dos Contos Perdidos.

Já Gobelins significa exatamente o mesmo que Orques, sendo apenas que Gobelim era uma palavra usada mais pelos Hobbits e Orque, mais pelas outras raças.

Sobre isso, algumas citações:

Às vezes (não neste livro) tenho usado "Gnomos" por Noldor e "gnômico" por noldorin. […] Porém, não se assemelhavam de nenhum modo aos Gnomos da teoria erudita, nem da imaginação popular; e agora abandonei essa representação por demasiado enganosa.
O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido) - Grifou-se

Nenhum resenhista (que eu tenha visto), embora todos tenham usado cuidadosamente a forma correta dwarfs [anões], comentou a respeito do fato (do qual me tornei consciente apenas através das resenhas) de eu usar no decorrer do livro o plural “incorreto” dwarves [anãos]. [...] Talvez seja permitido ao meu dwarf [anão] — uma vez que ele e o Gnomo3 são apenas traduções em equivalentes aproximados de criaturas com diferentes nomes e funções muito diferentes em seu próprio mundo [...]. O verdadeiro plural “histórico” de dwarf (como teeth [dentes] de tooth [dente]) é dwarrows [ananos], de qualquer modo: sem dúvida uma bela palavra, mas um tanto arcaica demais. No entanto, gostaria que eu tivesse usado a palavra dwarrow [anano].
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 17) - Grifou-se

Sua preferência por gobelins a orques envolve um assunto maior e uma questão de gosto, e talvez um pedantismo histórico de minha parte. Pessoalmente prefiro Orques (uma vez que essas criaturas não são “gobelins”, nem mesmo os gobelins de George MacDonald, aos quais se assemelham de certa forma).
As Cartas de J.R.R. Tolkien (Carta n.º 151) - Grifou-se

Sendo assim, não dá para nós simplesmente jogarmos as preconcepções populares de nossa época (ou até mesmo da época de Tolkien) em cima das criaturas originalmente criadas pelo autor, pois, embora ele tenha se utilizado de nomes comuns a nós, ele deixou claro diversas vezes que esses nomes modernos foram usados apenas como traduções aproximadas dos nomes de criaturas bem diferentes e, em muitos casos, inclusive se arrependeu de ter usado esses nomes.

Só a título de exemplo, a palavra Gnomo, que, como eu comentei, era como Tolkien chamava os Noldor, não tem relação nenhuma com as criaturas folclóricas diminutas que estamos tão acostumados e que adentraram na cultura popular através de Paracelso, um escritor suíço que, no século XVI, usou "gnomo" como um sinônimo de “pigmeu”.

O “gnomo” utilizado por Tolkien vem de uma origem muito mais antiga, mais especificamente o “gnōmē” grego, que significava algo como “pensamento” ou “inteligência”, sendo que o próprio Tolkien comenta sobre essa distinção dizendo que, embora seus Gnomos não tivessem nada a ver com os gnomos da cultura popular, sendo apenas aquele clã dos Quendi que mais se distinguiam por seu conhecimento e sua inteligência, ele acabou abandonando essa palavra ao ver que ela estava causando muita confusão desnecessária ("Gnomos" como significando os "Elfos noldorin" chegou a aparecer primeira edição de O Hobbit).

Seja lá o que Paracelso tenha pensado (se é que ele realmente inventou o nome), para alguns, “Gnomo” ainda sugerirá conhecimento. Ora, o nome alto-élfico desse povo, Noldor, significa Aqueles que Sabem; pois dentre os três clãs dos Eldar, desde seu começo, os Noldor sempre se distinguiram, tanto por seu conhecimento das coisas que são e foram neste mundo, quanto por seu desejo de conhecer mais.
O Livro dos Contos Perdidos 1 (1. O Chalé do Brincar Perdido)

Esse é um ótimo exemplo do porquê de ser tão difícil tentarmos associar as palavras utilizadas por Tolkien, um filólogo, com a noção que nós temos dessas mesmas palavras na cultura popular (seja atualmente seja da época do próprio autor).

Sendo assim, não há como supormos que os Elfos da Terra-média eram todos brancos simplesmente com base na etimologia da palavra porque

  1. a etimologia de Elfo é extremamente complexa, conforme ressaltado pelo próprio J.R.R. Tolkien em seu ensaio Sobre Estórias de Fadas;
  2. o próprio Tolkien deixou claro que os seus Elfos tinham pouco, se não nenhuma, relação com os Elfos da Europa, posto que "Elfos" foi usado apenas como uma tradução aproximada de “Quendi” (já que ele temia que as pessoas tivessem aversão a tantos nomes originais), ressaltando que essas duas palavras não eram equivalentes; e
  3. o próprio Tolkien disse que se arrependeu de ter se utilizado da palavra “Elfo” como uma tradução de Quendi, já que a cultura popular sugeria fantasias tolas, muito diferentes de suas criaturas.

Não adentrarei aqui nos possíveis significados originais de Elfos, pois entendo ser irrelevante para o objetivo deste artigo. Caso seja de seu interesse, eu adentro nessa questão no meu texto sobre os Elfos terem ou não orelhas pontudas: Os Elfos de Tolkien Tinham Orelhas Pontudas?

“Tolkien nunca mencionou um Elfo de pele negra; se existissem, ele teria mencionado algum.”

Em primeiro lugar, é importante destacar aqui que Tolkien ser descritivo e Tolkien ser redundante são duas coisas totalmente diferentes. Em outras palavras, de fato J.R.R. Tolkien sempre foi muito descritivo com seus textos, em especial em se tratando na natureza de seu mundo, mas ele nunca foi redundante nessas descrições.

De fato há alguns personagens élficos que Tolkien especifica nos livros como tendo pele clara, mas pense comigo: se todos os Elfos fossem brancos, seria necessário Tolkien ser redundante com relação a isso?

Se supostamente já teria sido estabelecido que todos Elfos eram brancos, seja lá com base em qual argumento, qual seria a utilidade de Tolkien dizer especificamente, por exemplo, que os Noldor tinham pele clara? Ou por que Tolkien diria que Maeglin, um Elfo, era branco? Ou por que Tolkien diria que Túrin, um homem branco, podia ser confundido com um dos Noldor em vez de dizer simplesmente que ele podia ser confundido com um Elfo? Nestes três casos, o uso desses complementos por Tolkien me pareceria algo tão redundante e inútil quanto dizer "subir para cima".

Agora, se a gente considerar que nem todos os Elfos eram brancos, bem como que o único clã descrito como sendo branco era o clã dos Noldor, Tolkien dizer que Maeglin, um Elfo sindarin, era branco, e que Túrin, por ser branco (e ter outras características "élficas"), podia ser confundido com um dos Noldor, deixa de ser redundante e passa a ser uma descrição totalmente válida.

Repito: Tolkien sempre foi muito descritivo, mas ele nunca foi redundante, e não havia utilidade nenhuma para que ele fosse redundante nessas pouquíssimas descrições de personagens élficos como tendo pele branca.

Além dessa questão da redundância, também não podemos nos esquecer de que a ausência de prova não é prova de ausência. Até podemos dizer que nas versões posteriores de seu legendário Tolkien de fato nunca mencionou especificamente um Elfo como tendo pele negra, mas isso por si só não é capaz de implicar que eles não existiam (e quem acha que significa precisa estudar um pouco de hermenêutica).

Ademais, Tolkien sempre deixou claro que ele não estava criando essas histórias, mas apenas traduzindo textos por ele encontrados, que teriam sobrevivido a todas essas eras. Sua mentalidade era a de que ele não estava criando, mas sim "descobrindo" essas histórias.

Sobre a ilha de Númenor, por exemplo, Tolkien diz que é muito difícil precisarmos quais eram exatamente a sua cultura e os animais que viviam lá porque pouquíssimos escritos teriam sobrevivido à sua queda.

Visto que todas esses assuntos eram estudados pelos homens de saber em Númenor, e muitas histórias naturais e geografias precisas devem ter sido compostas, aparentemente elas, como quase tudo o mais das artes e ciências de Númenor em seu apogeu, desapareceram na queda.
A Natureza da Terra-média (Parte Três: O Mundo, Suas Terras e Seus Habitantes, 13. Da Terra e dos Animais de Númenor)

Como foi dito, não é fácil descobrir quais eram os animais, aves e peixes que já habitavam a ilha antes da chegada dos Edain, e quais foram trazidos por eles. O mesmo vale para as plantas.
A Natureza da Terra-média (Parte Três: O Mundo, Suas Terras e Seus Habitantes, 13. Da Terra e dos Animais de Númenor)

Nessa mesma linha, falando sobre o parentesco de personagens, Tolkien deixa claro que não devemos interpretar o seu silêncio como sinônimo de inexistência de um filho ou parente para certo personagem, pois os textos élficos e humanos que teriam sobrevivido ao longo das eras costumavam mencionar apenas os personagens mais importantes, omitindo certos aspectos.

Deve-se recordar, no entanto, ao considerar os registros e as lendas do passado, que estes (em especial os feitos ou transmitidos pelos Homens) muitas vezes mencionam ou nomeiam apenas pessoas que desempenham um papel registrado nos eventos, ou que eram ancestrais diretos de tais atores principais. Portanto, não se pode concluir, apenas a partir do silêncio, quer na narrativa quer na genealogia, que determinada pessoa não tinha filhos, ou não mais do que os mencionados.
A Natureza da Terra-média (Parte Um: Tempo e Envelhecimento, 4. Escalas de Tempo)

Esses dois pontos (Tolkien nunca ter sido redundante e seu silêncio não poder ser interpretado como sinônimo de ausência), por si só, já deveriam ser suficientes para evidenciar que não é só porque Tolkien não falou sobre um personagem que ele necessariamente não existia. Isto é, não é porque Tolkien nunca descreveu um Elfo como tendo pele negra que nenhum existia.

Mas, em segundo lugar, é válido mencionar que na primeira versão de seu legendário, quando O Silmarillion ainda era chamado de O Livro dos Contos Perdidos e havia uma associação direta com a Inglaterra, como eu já comentei, Tolkien chegou sim a descrever um Elfo como tendo pele negra - mais especificamente Maeglin (na época chamado de Meglin), que era filho de Aredhel (uma Elfa 75 % noldorin e 25 % vanyarin) e Eöl (um Elfo sindarin).

Ora, o emblema de Meglin era uma Toupeira negra e ele era grande entre os que trabalhavam em pedreiras e um chefe dos que escavava em busca de minério, e muitos desses pertenciam à sua casa. Menos belo era ele do que muitos desse povo bonito, moreno e de ânimo não muito gentil, de modo que lhe tinham pouco amor [...].
A Queda de Gondolin (O Conto Original)

Com ela veio seu filho, Meglin, e ele foi lá recebido por Turgon como filho de sua irmã e, embora tivesse metade de sangue dos Elfos-escuros, foi tratado como um príncipe da linhagem de Fingolfin. Era moreno, mas formoso, sábio e eloquente e sagaz na conquista dos corações e mentes dos homens.
A Queda de Gondolin (A História Contada no Quenta Noldorinwa)

Como já mencionei anteriormente, Tolkien estabeleceu que os Noldor eram todos brancos, mas Meglin, embora fosse filho da (75 %) Noldo Aredhel, também era filho do Sinda Eöl. O tom de pele dos Sindar ou de Eöl nunca foi mencionado (nem mesmo nas versões anteriores do conto), mas isso deixa a entender que Meglin teria puxado de seu pai Sinda a sua pele escura, posto que Tolkien nunca estabeleceu uma regra quanto ao tom de pele dos Elfos sindarin.

Aliás, antes que alguém questione o significado de "moreno", ressalto desde já que a palavra originalmente utilizada por Tolkien foi "swart", conforme consta ao final do referido livro, no glossário de termos arcaicos e suas traduções para o português (A Queda de Gondolin, p. 282).

Now the sign of Meglin was a sable Mole, and he was great among quarrymen and a chief of the delvers after ore; and many of these belonged to his house. Less fair was he than most of this goodly folk, swart and of none too kindly mood, so that he won small love [...].
— The Fall of Gondolin (The Original Tale)

With her came her son Meglin, and he was there received by Turgon as his sister-son, and though he was half of Dark-elven blood he was treated as a prince of Fingolfin’s line. He was swart but comely, wise and eloquent, and cunning to win men’s hearts and minds.
— The Fall of Gondolin (The Story Told in the Quenta Noldorinwa)

Para quem não sabe, swart (e suas variantes swarty e swarthy) é uma palavra do inglês antigo, datada dos anos 1570, que, segundo o Online Etymology Dictionary, significa "'black, being of a dark hue' [...] in reference to skin color of persons" ("preto, de uma cor escura' [...] em referência à cor da pele de pessoas"). Suas variantes swarty e swarthy significam, também segundo o OED, "'dark-colored, tawny,' especially in reference to skin" ("'de cor escura, brozeado,' especialmente com relação à pele").

A título de curiosidade, swarthy foi a mesma palavra que Tolkien usou para descrever os Haradrim em O Senhor dos Anéis. Os Haradrim, também chamados de Sulistas (Harad = Sul), foram alguns do Homens aliados a Sauron na Guerra do Anel e todos os leitores concordam que eles eram Homens negros - tanto é que muitas pessoas que discordaram da existência de um Elfo negro na série usaram como justificativa de que não tinham problema com personagens negros em si o fato de que não se importariam se tivessem Homens Sulistas negros (em vez de Elfos negros), já que Tolkien teria descrito os Sulistas como negros nos livros (swarthy, no original).

(Em A Queda de Gondolin, swart foi traduzido como o moreno. Em O Senhor dos Anéis, swarthy foi traduzido como tisnados.)

'It is close on ten leagues hence to the east-shore of Anduin,' said Mablung, 'and we seldom come so far afield. But we have a new errand on this journey: we come to ambush the Men of Harad. Curse them!'

'Aye, curse the Southrons!' said Damrod. [...]

Sam, eager to see more, went now and joined the guards. He scrambled a little way up into one of the larger of the bay-trees. For a moment he caught a glimpse of swarthy men in red running down the slope some way off with green-clad warriors leaping after them, hewing them down as they fled.
— The Lord of the Rings (The Two Towers, Book IV, 4, Of Herbs and Stewed Rabbit)

"São cerca de dez léguas daqui até a margem leste do Anduin," disse Mablung, "e raramente chegamos tão longe. Mas temos uma nova missão nesta jornada: viemos emboscar os Homens de Harad. Malditos sejam!"

"Sim, malditos sejam os Sulistas", disse Damrod. [...]

Sam, ávido para ver mais, foi se juntar aos guardas. Engatinhou mais para cima, subindo em um dos loureiros maiores. Por um momento teve um vislumbre de homens tisnados, trajados de vermelho, que corriam encosta abaixo a certa distância dali, com guerreiros de verde que saltavam atrás deles, abatendo-os enquanto fugiam.
O Senhor dos Anéis (As Duas Torres; Livro IV; 4. De Ervas e Coelho Ensopado) - Grifou-se.

A discussão sobre racismo nas obras de Tolkien é muito complexa e não vou adentrar aqui (nota-se que Tolkien diz que Meglin era "moreno, mas formoso"). Aos interessados, há excelentes vídeos no YouTube dissecando a evolução pessoal de Tolkien ao longo das décadas, feitos por pessoas que têm muito mais propriedade para falar sobre o assunto do que eu (como, por exemplo, esse vídeo do Clube Literário Tolkieniano de Brasília).

Em síntese, em O Livro dos Contos Perdidos, que Tolkien começou a escrever em 1917, quando Tolkien tinha seus 25 anos, ele associava muito a cor negra (no geral, não necessariamente associada com a cor da pele) com a ideia de maldade. O famoso "luz vs. escuridão" sendo transposto como "branco vs. negro".

Ao longo de sua vida, conforme ia amadurecendo como pessoa, Tolkien foi deixando essa perspectiva de lado e "corrigindo" seus antigos escritos, retirando essas associações quando podia e passando a utilizar a cor negra também para coisas "boas" e a cor branca também para coisas "ruins". A título de exemplo, a bandeira de Gondor era negra e isso nunca é mencionado como significando algo ruim, e Saruman, mesmo sendo "o Branco", se corrompeu.

Na versão mais recente do conto da Queda de Gondolin (vide a presente no Silmarillion como publicado) essa menção a Maeglin, um Elfo vilão, como tendo pele negra foi alterada pelo autor, passando ele a descrever Maeglin como tendo pele branca.

Quando Maeglin chegou à sua estatura plena, assemelhava-se em rosto e forma antes à sua parentela dos Noldor, mas em ânimo e mente era o filho de seu pai. [...] Era alto e de cabelos negros; seus olhos eram escuros, porém, luzentes e agudos como os olhos dos Noldor, e sua pele era branca.
O Silmarillion (Quenta Silmarillion; 16. De Maeglin)

Sobre essa alteração no tom de pele de Maeglin, é importante salientar que, como você deve ter percebido, na versão primária do conto, quando Meglin tinha pele negro, Tolkien apenas salientou suas diferenças com os Elfos noldorin, enquanto na versão posterior do conto, quando Maeglin passou a ter pele branca, o autor acrescentou a informação de que ele "assemelhava-se em rosto e forma antes à sua parentela dos Noldor".

Isto, por si só, corrobora com o já mencionado no primeiro tópico, de que apenas os Noldor eram notoriamente brancos. Quando Tolkien diz que Túrin, um Homem branco, se parecia com os Elfos, ele não diz simplesmente "Elfos", mas especifica ele como parecendo com os Elfos noldorin. Quando Tolkien altera a pele de Maeglin, de negra para branca, ele acrescenta a informação de que ele se parecia com seus parentes noldorin.

Dizer que Maeglin se assemelhava "em rosto" com sua parentela dos Noldor (isto é, com os parentes de sua mãe) é o mesmo que dizer que ele não se assemelhava com sua parentela dos Sindar (isto é, com os parentes de seu pai). E nem se diga aqui que, quando disse "em rosto", Tolkien estava se referindo aos olhos de Maeglin, pois os Noldor foram descritos especificamente como tendo olhos cinzas, enquanto Maeglin é decrito nessa passagem como tendo olhos escuros (embora "luzentes e agudos" como os olhos dos Noldor).

Se os olhos de Maeglin não tinham a mesma cor dos olhos dos Noldor, o que mais poderia significar dizer que ele, "em rosto", se assemalhava aos seus parentes noldorin? Ao meu ver, a única opção que sobra é a cor de sua pele, evidenciando que somente os noldor eram notórios por serem brancos e dando a entender que, se Eöl, o pai de Maeglin, não fosse negro, ao menos o seu povo, os Sindar, tinham membros negros.

Em terceiro lugar, ainda que a cor da pele de Maeglin tenha sido alterada na versão posterior do conto, de modo que, a partir desse momento, passamos a não ter nenhum Elfo descrito por Tolkien como tendo pele negra, fato é que a versão antiga trazer ele como um Elfo negro é prova de que, para Tolkien, Elfos de pele negra eram plausíveis e existiam em seu universo, não sendo isso um problema para as leis estabelecidas pelo autor.

Sendo assim, com relação ao fato de Tolkien supostamente nunca ter descrito um Elfo como sendo negro, nós temos que considerar que:

  1. ausência de prova não é prova de ausência, de modo que Tolkien nunca ter descrito um Elfo como tendo pele negra é diferente de ele ter dito que Elfos de pele negra não existiam;
  2. Tolkien chegou a descrever alguns poucos Elfos como tendo pele branca e, se todos os Elfos fossem brancos, essas passagens automaticamente se tornariam redundantes (algo que Tolkien nunca foi);
  3. o próprio Tolkien deixou claro que todas essas histórias se tratavam de "documentos históricos", de modo que, se um personagem não aparecia nessas histórias, isso não significava que ele não existia, de modo que a gente não deveria interpretar o seu silêncio como sinônimo de inexistência;
  4. Tolkien já descreveu sim um Elfo como tendo pele negra em seu legendário, mais especificamente Meglin, no conto original da Queda de Gondolin, evidenciando que isso não era um problema;
  5. quando Tolkien alterou a pele de Meglin de negra para branca, ele acrescentou a informação de que ele era semelhante "em rosto" aos seus parentes Noldor, o que só pode significar seu tom de pele já que seus olhos eram negros e os Noldor tinham olhos cinzas, o que ressalta o ponto anterior de que apenas os Noldor eram notoriamente brancos.

Da síntese e conclusão

Em síntese,

  1. apenas os Elfos noldorin foram especificados por J.R.R. Tolkien como tendo pele clara, de modo que essa questão foi deixada em aberto com relação aos outros dois clãs élficos (Vanyar e Teleri);
  2. sempre que um personagem branco é comparado aos Elfos, ele é comparado especificamente com os Noldor, o que ressalta a ideia de que apenas os Noldor eram notórios por serem brancos;
  3. Tolkien deixou claro que a Terra-média não representa a Europa nórdica nem setentrional, seja geográfica ou espiritualmente;
  4. não se sabe ao certo o significado original de Elf, bem como essa palavra adquiriu a atmosfera dos contos alemães, escandinavos e celtas apenas em épocas posteriores, por meio de seu uso em traduções, conforme o próprio Tolkien deixou claro em seu ensaio "Sobre Estórias de Fadas", não sendo possível precisar se realmente seria relacionado à ideia de "branco", como por alguns sustentado;
  5. Tolkien disse que Elfos não era equivalente a Quendi (termo utilizado naquele mundo para se referenciar aos Elfos), tendo Elfo sido a palavra inglesa mais próxima que ele conseguiu encontrar;
  6. Tolkien disse que se arrependeu de usar Elfo como tradução de Quendi, uma vez que, segundo ele, ela estava viciada por outros significados na cultura popular, que não guardavam relação com o seu universo, já que seus Quendi tinham pouca relação com os Elfos e Fadas da Europa;
  7. Tolkien disse que o seu silêncio não pode ser interpretado como sinônimo de inexistência, conforme por ele mesmo dito com relação às árvores genealógicas de seu universo;
  8. em O Livro dos Contos Perdidos, Tolkien chegou a citar um Elfo como tendo pele negra, sendo que, mesmo que essa descrição tenha sido deixada de lado mais tarde, isso prova que Elfos negros não eram um problema para as regras de seu universo.

Assim, fica evidente que o único possível desrespeito com relação ao "cânone" estabelecido por J.R.R. Tolkien seria com relação aos Elfos com sangue 100 % noldorin, que o autor especificou como tendo pele clara.

Quanto a todos os outros grupos dos Elfos (que eram vários e descendiam dos clãs vanyarin e telerin), ou quanto aos Elfos que não tinham sangue 100 % noldorin, não foi estabelecido nenhuma regra, sendo possível que tivessem diferentes tons de pele, como o próprio Maeglin, que era apenas 37,5 % noldorin e no início tinha pele escura, provavelmente herdada de seu pai sinda.

Notas

  1. Apesar de terem despertado todos no mesmo local, ao longo das eras os Elfos se dividiram em diversos grupos e etnias (assim como os próprios Homens também se dividiram em vários grupos e etnias após seu primeiro despertar), mas seus três principais clãs eram os Vanyar, os Noldor e os Teleri. Destes, os Teleri foram os que mais se subdividiram em outros grupos e é deles que vêm os Sindar (os Elfos-cinzentos).